Olhando em Redor

Questões culturais

Os comportamentos por mim identificados na comunidade chinesa de Macau são, na maior parte das vezes, o reflexo de uma herança cultural com muitos séculos de prevalência, um tudo ou quanto pouco compreendida pela generalidade do comum ocidental.

Refiro-me a modos, trejeitos e valores difíceis de ganhar aceitação junto de muitos europeus, por se distanciarem dos ensinamentos que assimilaram nos países de origem.

Está a ter grande repercussão junto da opinião pública o polémico apoio financeiro de 100 milhões de yuans (123 milhões de patacas) à Universidade de Jinan, sendo o Chefe do Executivo, Fernando Chui Sai On, vice-presidente do Conselho Geral desta instituição de Ensino Superior e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Macau, entidade que aprovou o donativo.

Muito mais do que levantar a questão do alegado conflito de interesses, há que realçar a falta de transparência a nortear várias decisões tomadas por Chui Sai On enquanto Chefe do Executivo, algumas das quais noticiadas pela Imprensa local. Conhecendo os antecedentes históricos até sou capaz de compreender algumas dessas falhas.

No século XVI, descrevia o padre Gaspar da Cruz no Tratado em que, se contam muito por extenso As Cousas da China com suas particularidades e assim do Reino de Ormuz: “Todo o homem que na China tem qualquer ofício, mando ou dignidade por el Rei, se chama loutia, que quer dizer em nossa língua senhor. (…) Há em cada uma província cinco [loutias], que entre todos são mui principais, os quais têm muito grande autoridade e majestade em suas pessoas, e são grandemente acatados e venerados não somente do comum povo, mas ainda de todos os outros loutias. O principal dos cinco é o governador a que na sua língua chamam Tutom [ou Tutam]”.

Ficando-me apenas por esta passagem – outras mais poderia mencionar – percebo a razão de ainda hoje me deparar com decisões governativas pouco transparentes, mesmo que em termos de âmbito criminal nada possa ter sucedido. Acontece que se o primeiro sistema não é estático na China continental, muito menos é o segundo sistema em Macau. O mesmo será dizer da percepção que a população local de etnia chinesa tem do Executivo da RAEM, razão pela qual ganha cada vez mais relevância a ética e a transparência nos actos da governação.

Raimundo do Rosário, na qualidade de secretário para os Transportes e Obras Públicas, teve um comportamento diferente de Chui Sai On, quando há cerca de três semanas esteve presente numa reunião do Conselho do Planeamento Urbanístico, na qual pediu para ser dispensado da discussão do projecto do Ramal dos Mouros, por anteriormente ter colaborado no empreendimento. Raimundo do Rosário, certamente por ter residido muito tempo fora de Macau, não está tão exposto a questões (ou razões) de índole cultural.

Na mesma linha de ideias até compreendo a defesa feita ao donativo, e consequentemente a Chui Sai On, pelo secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, que rejeitou a existência de conflito de interesses. No seu entendimento, o procedimento foi «legal e também correcto», apesar de não ser ele a quem «compete explicar [a legalidade do mesmo], porque isso não é da minha área».

Não abordo com leviandade a tomada de posição de Alexis Tam, mas apenas realço a questão cultural: porquê tanto “acatamento” e “veneração” ao superior hierárquico?

Quanto ao CCAC, também não tomo qualquer posição – pelo menos para já – por estar em curso a investigação ao donativo. E para evitar algum mal-entendido, deixo bem claro que a minha alusão à figura do “loutia” tem como único propósito a abordagem ao cargo, e nunca a qualquer outra vertente que possa pôr em causa a dignidade dos visados.

 

Mulheres de partido

Se há algo que durante algum tempo me fez confusão em Macau foi saber como consegue a sociedade ser tão hipócrita a ponto de fechar os olhos à realidade subjacente a muitas “saunas” (felizmente não são todas), por nada mais serem do que antros de prostituição, em casos específicos controlados pelo crime organizado.

Dá a impressão que o sexo feminino é visto e tratado como algo de segunda categoria; uma mercadoria ao dispor de poderosos, com intenção de acumularem ganhos à custa do corpo alheio. O mais surpreendente foi descobrir que tudo isto já é bastante antigo.

Recuperando as palavras do padre Gaspar da Cruz: “As mulheres de partido [meretrizes] de nenhuma qualidade as consentem morar dos muros [da cidade de Cantão] para dentro. E fora no revalde [arrabalde] têm suas ruas próprias em que vivem, fora das quais não podem viver: cousa que a nós faz avesso. Todas as mulheres de partido são cativas, criam-nas para isso desde meninas compram-nas às mães (…)”.

De igual modo, acrescentava o sacerdote: “Os senhores, ou lhe[s] levam as honras, ou lhas vendem; e quando hão-de ser postas na rua das mulheres de partido, são escritas por oficial del Rei em um livro, e o senhor é obrigado acudir cada ano com um tanto a este oficial: elas são obrigadas a responder a seu senhor cada mês com um tanto”.

Num mundo cada vez mais global ensina-nos o Direito Internacional, o Código Penal de Macau e a “moral privada” que certas práticas não devem continuar a ser vistas com grande indiferença pela sociedade da qual faço parte – a irmã Juliana Devoy é uma das raras excepções.

Está mais do que na hora de rever a lei do “combate ao crime de tráfico de pessoas” e de tomar medidas amplamente corajosas que alterem o status quo da tal hipocrisia vigente, sendo uma delas a criminalização dos clientes de prostitutas, independentemente de saberem se elas estão ou não a ser exploradas sexualmente.

PEDRO DANIEL OLIVEIRA

pedrodanielhk@hotmail.com

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