Os bárbaros
Causou grande impacto, a montante e a jusante, a declaração da rainha Isabel II, que foi captada por uma câmara de televisão, a chamar de «muito rude» à delegação chinesa que esteve em visita oficial no Reino Unido, em Outubro do ano passado.
A reacção não se fez esperar, ganhando primazia o Global Times, publicação do grupo Diário do Povo, órgão oficial do Partido Comunista da China, ao acusar a Imprensa britânica – o canal BBC – de empolar o incidente e difundir o conteúdo como se fosse “o tesouro mais precioso” em terras de Sua Majestade.
“O Ocidente nos tempos modernos atingiu o apogeu e criou uma civilização brilhante, mas a sua Imprensa está cheia de coscuvilheiros irresponsáveis”, que “mostram os dentes, põem as garras de fora e são narcisistas, retendo os maus modos dos bárbaros”, referiu a publicação chinesa.
“À medida que eles forem expostos a 5000 anos de contínua civilização oriental, acreditamos que irão progredir”, sublinhou, acrescentando ser impensável que as autoridades britânicas tivessem divulgado a filmagem de forma deliberada, porque “se fosse [algo] propositado, isso seria, sim, um gesto verdadeiramente cruel e rude”, até porque “os diplomatas chineses de certeza que também falam mal dos burocratas britânicos em privado”.
O “fait-divers” em nada vai alterar o novo ciclo das relações bilaterais entre o Reino Unido e a China. No entanto, fiquei com um grande sorriso estampado no rosto ao ler a peculiar reacção do Global Times, porque descortinei, de imediato, dois propósitos fundamentais:
O primeiro, quiçá o mais saliente, foi saber que os chineses ainda conotam os ocidentais como “bárbaros”, à imagem do que aconteceu quando os primeiros europeus, neste caso os portugueses, chegaram por via marítima ao porto de Tamão, em 1513.
Depois de Jorge Álvares (e outros que iam com ele) “pousaram” ou estiveram ao largo daquela ilhota, agora soterrada pelo aeroporto de Chek Lap Kok, importantes nomes da História de Portugal, tais como Duarte Coelho, Simão de Andrade, Rafael Perestrelo, Fernão Peres de Andrade… Naquele tempo, os “chins” apelidavam os “bárbaros” de “folangji”, que por sua vez eram oriundos do país “Folangji”. A designação era extensível a todos os ocidentais de cor branca, invariavelmente de olhos grandes e barbudos (há que ter em conta que outros europeus já tinham chegado ao Império do Meio, por via terrestre).
O segundo pormenor tem a ver com o facto da China querer mesmo dominar o mundo, não pela via beligerante, mas sim por força do seu poderio económico, ao qual está inerente a progressiva aculturação de hábitos e costumes orientais no mundo ocidental.
Se for este o caso, temo que as autoridades chinesas estejam completamente erradas, porque terão primeiro que apresentar soluções tecnológicas de ponta que se sobreponham a tudo o que é inovação no Ocidente, em vez de fazerem com que a China seja conhecida como uma espécie de “loja dos 300”.
Há depois que desenvolver um modelo eficiente dentro de portas na relação entre a liberdade de expressão e a salvaguarda do interesse nacional, algo que aos olhos do comum ocidental ainda está longe de ser tangível.
Posto isto, sendo eu europeu, apercebo-me que não é pela estratégia de investimento fora de portas, através da entrada no capital social de empresas ou da aquisição de dívidas soberanas, entre outras medidas, que a China vai dominar o mundo “de facto”, mesmo tendo em conta que lidere os índices económico, populacional, etc.
Heróis nacionais
A História é comummente feita de atrocidades, sendo alguns dos principais protagonistas elevados à qualidade de heróis nacionais. As espadas, as espingardas, os canhões e as metralhadoras, entre outras coisas que tais, são inegáveis instrumentos de valentia que caracterizam o percurso de tão aclamadas figuras.
E o que fizeram muitos deles? Subjugaram povoações, ou países inteiros, às suas leis, muitas delas desumanas. Ainda hoje considerados heróis nacionais, não deixam de ser vistos como sanguinários por qualquer cidadão estrangeiro. Ficam os legados e as lembranças na forma de castelos, escritos, pinturas, invocações patrióticas, etc.
E que desculpas são amiúde invocadas por quem os defende? Os tempos eram outros, o mesmo será dizer da percepção que havia sobre as coisas, sem esquecer que então não vigorava o Direito Internacional, conforme é hoje conhecido.
Já nada me choca porque neste mundo dos homens têm sido as guerras e determinadas revoltas a fazer heróis, sobrepondo-se as matanças à dignidade humana – a mesma que em muitos quadrantes continua a ter pouco valor.
As potências não estão isentas de erros, tanto no Oriente como no Ocidente. A verdadeira utilidade desses heróis (ditos) nacionais é originar uma consciência colectiva que, para todos os efeitos, sabe muito bem que os períodos negros da História jamais devem ser repetidos.
Oportunidade perdida
É um facto sobejamente conhecido, pelo menos por estas bandas, que o Poder Central usa a política “um país, dois sistemas” para procurar resolver a questão de Taiwan. A julgar pelos acontecimentos sociais em Hong Kong, fruto do movimento “Occupy Central”, Macau podia ser a fonte de redenção. Debalde. Até porque não há que atirar areia para os olhos, visto a contestação social ser mais do que evidente na RAEM, umas vezes nas ruas, outras em privado e outras nas redes sociais.
Temo que Macau seja uma oportunidade perdida, nunca pelo que já conseguiu em termos de liberdades e garantias, mas tão somente pela falta de transparência que norteia o desempenho de determinadas personalidades com responsabilidades políticas.
E porque são pedras de arremesso com utilidade para quem está do outro lado do Estreito, resumo o essencial à seguinte questão: Como pode a RAEM servir de exemplo quando a sua governação, pelo que tem à disposição, não beneficia a maioria da população em termos práticos, mas sim a minoria constituída por uma elite de endinheirados e oligarcas? Macau, tal como Hong Kong, não está ser exemplo.
PEDRO DANIEL OLIVEIRA