As muitas faces do mal
A Guerra para acabar com todas as guerras. Foi há cem anos (11 de Novembro de 1918). E isso deve fazer-nos pensar… num mundo como o de hoje, em que não poucos crêem na inevitabilidade, a prazo, duma nova guerra.
O que se vai comemorar, pois? A PAZ, por certo. O fim de um tremendo pesadelo.
A Primeira Guerra Mundial tirou a vida de mais de nove milhões de soldados; 21 milhões a mais ficaram feridos; mortes civis causadas indirectamente pela guerra numeradas perto de dez milhões.
A Primeira Guerra Mundial também foi mencionada como “a primeira guerra moderna”. Muitas das tecnologias que agora associamos a conflitos militares – metralhadoras, tanques, combate aéreo e comunicações de rádio – foram introduzidas em grande escala durante a Primeira Guerra Mundial.
Os severos efeitos que as armas químicas, como gás mostarda e fosgênio, tiveram sobre soldados e civis durante a Primeira Guerra Mundial galvanizaram atitudes públicas e militares contra o seu uso continuado. Os acordos da Convenção de Genebra, assinados em 1925, restringiram o uso de agentes químicos e biológicos na guerra, e permanecem em vigor até hoje.
A guerra, como se sabe, é o mal absoluto. Mas há outras faces do mal.
1– A recente tragédia de Pittsburgh, em que onze pessoas foram assassinadas e várias outras feridas, numa sinagoga, enquanto rezavam num sábado, o dia santo da religião judaica, é isso mesmo – uma tragédia. E um crime hediondo. Sem escusa.
Tragédia – porque ceifa do convívio dos familiares e amigos vidas que são em si mesmas preciosas. Hediondo o crime – porque não tem qualquer justificação. E indesculpável – pelos dois motivos anteriores combinados.
O modo, aliás, como o assassino se introduziu no recinto do templo, clamando “morte a todos os judeus!”, revela o grau de extrema perturbação, de demência mesmo (não sou psiquiatra e por isso não garanto a exactidão científica do diagnóstico…) do autor dos crimes.
Sem querer fingir inocência ou ignorância sobre contextos históricos e os preconceitos neles enraizados, que atravessam a nossa existência como comunidade humana, nunca compreendi o anti-semitismo, e por isso sempre o interpretei como um daqueles enigmas que só o irracional (doentiamente) “explica”, se o irracional consegue explicar alguma coisa.
E mesmo aquela “razão” ligada à morte de Jesus, segundo a qual foram os judeus que mataram o Messias, e por isso são merecedores do castigo eterno – tal pseudo-razão sempre me pareceu pueril, ignorante, e ancorada numa das características da nossa natureza humana: julgar os outros. Definir-lhes um destino. Nós, do alto da nossa “superioridade” moral.
Não foram obviamente todos os judeus que traíram Jesus, mas apenas Judas Iscariotes. Não foram todos os judeus, mas apenas a hierarquia religiosa daquele preciso momento e lugar, que considerou que a morte de um inocente valia bem a salvação de todo um povo. Tal como entendiam a questão, naquele exacto contexto político, isto é, a ocupação romana da Palestina.
Mas nós cristãos temos uma resposta pronta para estas questões de ódio incompreensível para com os nossos semelhantes, como são o anti-semitismo e todas as outras formas de discriminação: é o mal. É a persistência do mal, na já longa caminhada do homem.
Claro que esta categoria mental (o “mal”) é rejeitada pelos que encontram no vocabulário das ciências uma segurança e um conforto maiores para explicar o homem. A esses, a Bíblia (que não é senão, além de muitas outras coisas, uma profunda reflexão sobre o Mal, e sobre o Bem, a categoria que se lhe opõe) parece desactualizada, leitura cada vez mais reservada a gente inculta, temerosa da vida, ou as duas coisas.
Mas não há volta a dar. O mal existe! É como o vento. Não o vemos, mas sentimo-lo. E negar-lhe a existência é um absurdo.
2– E é esta chave de leitura baseada no mal que, do meu ponto de vista, explica o mais profundo, o mais essencial da vida internacional. Daí o ter dado o título que dei a esta crónica.
Não abandono de súbito os princípios da razão com que tenho tentado compreender o mundo. Mas muito ultrapassa a razão. É preciso admiti-lo. E, como cristão, tenho uma leitura mais profunda do que vai acontecendo, entendendo no essencial que todos os encontros e sobretudo os desencontros do Homem com a História se inscrevem numa linha de continuidade multimilenar, explicada pelo dilema da revolta e do (des)encontro com Deus.
A reacção epidémica, hoje, contra refugiados e imigrantes, na Europa e nos Estados Unidos, inscreve-se totalmente, do meu ponto de vista, nesta linha de opções éticas fundamentais que têm a ver com o modo como o ser humano entende a sua presença no planeta.
Dando exemplos, tem a ver com opções éticas, mormente dos decisores políticos, fomentar conflitos ou preveni-los, como é o caso gritante das escolhas de um só homem, o ainda Presidente sírio, quando os seus concidadãos lhe pediram maior participação política. Muitos milhares de mortos e de refugiados depois, o referido líder continua no mesmo lugar, liderando todavia uma nação em ruínas. Enlutada e destruída. Valeu a pena? Ele, e quase só ele, dirá que sim…
3– O drama de Pittsburgh, com que comecei esta reflexão, insere-se num contexto emocional e político americano que quem segue diariamente os media internacionais conhece bem. E esse contexto está intimamente ligado a opções políticas e ÉTICAS da actual presidência americana.
Comecemos pelo “patriotismo” inserto em tais políticas. E no sentido da soberania nacional que é aí tão propagado pelo seu principal actor. Onde existe não apenas o apelo tácito a formas mais ou menos veladas de xenofobia (nós e os outros, os outros contra nós), como se pretende construir uma identidade nacional em perigo…
… e isto, exactamente no país onde a identidade incorpora elementos de diversidade quase únicos no mundo, onde ser o mesmo é, todos os dias, ser diferente!
O discurso do egoísmo nacional é igualmente uma opção ideológica E UMA ESCOLHA ÉTICA. Que, porque assim é, corrói valores mais básicos, de solidariedade em geral e de compaixão para com os mais pobres.
4– E é nesse contexto deletério que se inscrevem outros males que, não sendo exclusivamente americanos, nos Estados Unidos se agravam pelos desafios adicionais do mosaico racial e étnico, cultural e religioso, que se identifica com os fundamentos daquela sociedade.
Assim, os sonhos da supremacia branca, filhos da preeminência histórica dos primeiros colonos, esbarram com a realidade multissecular da escravatura e de tudo o que ela deixou como vestígios tardios. E encontram expressão concreta nos episódios de racismo, tão dispersos no seio da população, como habitando instituições tão emblemáticas como as forças policiais.
A discriminação e a violência religiosas é também uma das características mais marcantes e deploráveis do tempo presente.
E o tristemente irónico é que o preconceito religioso tem muito mais de extra-religioso do que teológico propriamente dito. Pois tal preconceito é frequentemente o ponto de convergência ou de encontro de muitos “ismos”, desde o racismo ao tribalismo, e de muitas “ias”, desde logo a xenofobia que, em clima de incerteza colectiva, é explorada pela demagogia de políticos sequiosos de poder.
Em política, quase tudo deriva de opções éticas. Quer se queira, quer não.
Carlos Frota
Universidade de São José