O Nosso Tempo

Segundo ensaio sobre a cegueira

O título desta crónica ocorreu-me quando, lembrando-me do livro de Saramago, me dei subitamente conta de que, vivendo embora no império mundial da hiper-informação, uma nova neblina, densa, quase opaca, desce sobre nós todos, privando-nos do conhecimento objectivo da realidade e conduzindo-nos assim, sem darmos por isso, a novas formas de cegueira. Cegueira cívica. Cegueira intelectual. Porque estamos indefesos no universo global das informações falsas, manipuladas ao sabor de interesses muitas vezes inconfessáveis. E indefesos perante o vasto domínio do ciberespaço, de que o cidadão comum não sabe rigorosamente nada. E não tem, nem nas democracias reputadas como as mais liberais, qualquer capacidade de supervisão e portanto de controlo.

MENTIRAS & CONSPIRAÇÕES, LTA

Ser privado de informação objectiva, hoje, a nível mundial, sem distinção de país ou de regime, é a vitória mais estrondosa de quem sabe que a única arma da cidadania é uma informação isenta e objectiva. E a vitória desses começa quando passamos da crença ingénua em tudo o que se publica ou edita, ao pôr tudo em causa, porque em nada se confia já.

E como é que se preenche o vazio deixado pela objectividade da informação, se não pelos slogans de comício, papagueados pela repetição das fórmulas ideológicas mais baratas (o eleitorado de Trump é muito receptivo a isso mesmo, tal como o dos diferentes populismos europeus) e pelas teorias da conspiração?

Sim, as teorias da conspiração. A culpa de tudo é dos judeus. A culpa de tudo é dos árabes. A culpa de tudo é do grupo X, Y, Z… que quer dominar o mundo e, na aparente confusão geral, faz avançar uma agenda muito própria que no final nos escravizará a todos.

Sem negar, naturalmente, a existência dos sonhos de domínio os mais diversos, por este ou aquele grupo melhor ou pior identificado, e não recusando também a grande tentação de ter chaves únicas para interpretar a caminhada do mundo, superando a complexidade do tempo presente, não descanso no meu modo de tentar compreender. Apenas compreender.

 

CAFÉ, TORRADAS E NOTÍCIAS FALSAS

Quando acordo pela manhã e ligo o rádio, para me informar sobre as notícias do dia, sinto frequentemente uma espécie de dor ilocalizável, não física, mas de outra natureza, como se a antecipar negativamente o que está para vir.

O que é que a última noite gerou de mais desgraças? – ouço-me a perguntar a um interlocutor inexistente, cujo silêncio me devolve a pergunta.

Mais escândalos na vida privada de algumas figuras públicas, habilmente explorados por um jornalismo sedento das primeiras páginas, ou das primeiras imagens e sons, na omnipresente televisão?

Mais uma troca azeda de palavras entre líderes mundiais, pela mais recente afronta, a mais recente iniciativa discriminatória, o mais recente acto de desrespeito para com o país X, o Governo Y, o povo Z?

À medida que o dia avança, o consumidor insaciável de notícias em que me tornei, neste Outono da vida, apenas multiplicando pelo tempo mais disponível o interesse e a curiosidade que sempre tive em olhar o mundo e tentar compreendê-lo, toma cada vez mais consciência de que se vive hoje de sobressalto em sobressalto.

 

DE SOBRESSALTO EM SOBRESSALTO…

…a propósito do que se sabe, do que vem escrito ou é dito. E, cada vez mais, do que não é escrito, não é dito, mas que está cada vez mais presente.

Como? Pelo uso sofisticado de novas tecnologias da informação, num mundo em que os progressos da ciência e da técnica, se bons para melhorar a vida do homem comum, são rapidamente transformados em novas armas de guerra. Como os drones, que tanto servem para transportar medicamentos e bens de primeira necessidade para zonas inacessíveis ou palco de desastres naturais, como se metamorfoseiam em assassinos sem rosto, se equipados com armas letais.

A luta que hoje se trava no reino misterioso do ciberespaço, batalha de que a maioria esmagadora de nós não conhece nem os limites nem as implicações, é talvez ainda o melhor exemplo das forças que o homem desencadeou e que lhe fogem já ao controlo, abrindo novas frentes na competição para o poder mundial.

E o cidadão comum encontra-se totalmente indefeso, perante esse novo universo reservado a iniciados, marionetas eles próprios de forças que não conhecem. Ou a que aderem sem ter consciência de que ficam prisioneiros delas para sempre.

 

CIDADANIA E VERDADE

Em décadas (pelo menos cinco…) de leitura adulta, e portanto a maior parte das vezes atenta, das notícias de cada dia, tenho procurado focar a minha atenção sobre o que leio, vejo e ouço, tentando lograr ao mesmo tempo vários objectivos: inteirar-me, desde logo, da realidade factual que me é narrada. De seguida, tentar articulá-la com o que conheço já sobre a mesma questão, chamando dos arquivos da memória o que está lá depositado e que tenha correlação com aquele tema. E julgar tudo, depois, à luz de critérios de verosimilhança (…mas isto faz sentido?), para tentar, por fim, indagar o que me falta saber e onde ir informar-me.

Ora, este exercício quotidiano mínimo de cidadania (o direito e mesmo o dever de estar informado) está hoje ensombrado pela invasão, a todos os níveis, receia-se, das chamadas FAKE NEWS, expressão anglo-saxónica que nos conduz fatalmente às margens do Potomac e aos habitantes daquele planeta especial.

Claro que tal tipo de falsidades não é monopólio estado-unidense, nem a prática de tal desporto apanágio de uma equipa especial. Diz-se aliás que, noutras paragens, são bens de consumo (as notícias falsas) cada vez mais corrente. E com cada vez maior sucesso, como produto de exportação…

Para onde, pois, apontar a lanterna, em floresta tão densa, quando o que se busca sempre é o dia claro?

 

UMA CORRIDA DE OBSTÁCULOS

Se estar informado era, antigamente, um saboroso passeio em avenidas largas (nunca o foi inteiramente, claro, mas digamos assim para simplificar) hoje exige, por vezes, as qualidades de um bom detective. Ou de excelente enólogo…

E, já se sabe, ser detective é ter de andar por todos os caminhos, os principais e os secundários. Em termos de informação, quero dizer, e reportando-me às FAKE NEWS.

Informarmo-nos hoje não é também, de certeza, sorver de um só trago a nossa bebida favorita, mas bebê-la com precaução, golo a golo, interrogando-nos sobre o gosto que tem cada mililitro sorvido…

Não pretendo sugerir senão uma atitude vigilante. E de recorrermos à História para recordar, ciclicamente, como certas manipulações do poder, como o da informação, são inevitáveis sementes de conflitos futuros.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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