O Nosso Tempo

Kung Hei Fat Choi!

Kung Hei Fat Choi! Recomeçar é preciso! Na contagem imparável do tempo é fundamental determo-nos um pouco, para olhar a bússola e confirmar o norte. E isto, em breves dias de reencontro familiar. Ou no lapso tão curto de uma refeição entre amigos. A grande transumância anual, de milhões de chineses, regressando às suas terras de origem para reverem familiares e revisitarem os lugares a que chamam berço, é um poderoso apelo a que nós, amigos estrangeiros, compreendamos este povo, o seu modo de ser e de viver, com o respeito que nos merece uma civilização multimilenar.

Kung Hei Fat Choi! A simples “música” desta saudação festiva faz-me regressar, saudosamente, ao meu primeiro Ano Novo Lunar passado em Macau. Em 1997, escassos meses depois da minha chegada, com a missão oficial específica de organizar o futuro Consulado Geral de Portugal.

Estava-se a pouco menos de três anos da transferência de poderes sobre Macau para a China. E a última Administração Portuguesa afadigava-se a ultimar, em colaboração com a parte chinesa, as diferentes iniciativas preparatórias do evento e do legado português que entendia deixar, neste pedaço tão acolhedor da grande China.

As negociações no Grupo de Ligação Luso-Chinês intensificavam-se . Os elementos da comunidade portuguesa que decidiram partir preparavam novos rumos para as suas vidas. E quanto à comunidade macaense, os filhos da terra, preparavam-se também para enfrentar um futuro ainda incerto.

Eu tudo olhava e tudo tentava compreender, apostado, desde mesmo antes de vir, em acompanhá-los nos primeiros anos da sua “aventura” histórica.

Acomodado provisoriamente na sede da Base portuguesa do Grupo de Ligação, na Rua do Campo, fiz a minha iniciação à Macau graças a bons e velhos amigos que aqui vim encontrar, frutos dessa diáspora do antigo Império que em Macau encontrariam uma terra adoptiva.

Um “porto interior”, contra mais tufões nas suas vidas, para explorar um pouco uma imagem forte que todos nós aqui compreendemos. E apaixonei-me imediatamente por esta terra tão acolhedora. E tão obviamente chinesa. A que, todavia, os portugueses foram dando, no decurso dos séculos, toques sucessivos de originalidade irrepetível que modela a sua identidade. Nas pedras mortas de monumentos e edifícios. Nas pedras vivas dos filhos da terra.

 

Uma viagem interior

E comecei a deambular por estas ruas, sempre que o tempo livre me permitia. Nas casas tradicionais do Tap Seac julguei entrever outras gentes, de outras origens e de outros tempos. No Palácio da Praia Grande, um poder declinando, conforme o relógio inexorável da História. E nas centenas de prédios de andares (e de muitos arranha-céus já), espalhados por toda a cidade, imaginei milhares de vidas anónimas, de gente com sonhos e com ambição para a sua terra.

As Ruínas de São Paulo sempre me pareceram, muito menos do que o símbolo de um passado morto, a fachada de um templo majestoso, aberto para o futuro, onde hão-de caber todos os que nele quiserem ter o céu como limite. E as casas museu da Taipa, tal como as restantes mansões coloniais ainda existentes, mais do que o testemunho de uma era perdida na memória, a reprodução em miniatura, isso sim, de uma certa forma de viver e de conviver que ganha em múltiplas vantagens, quando comparadas com os arranha-céus do COTAI ou de outros lados.

Sem ser um empedernido saudosista, não consigo esquivar-me às leis físicas e sociais da proximidade, em vez da distancia; do contacto pessoal, em vez do anonimato.

As velhas ruas da cidade mais antiga sempre me encantaram, com as suas vidas pequeninas, de gente anónima, mas com sonhos tão grandes, pelo menos, como os meus…

Na Pousada do Lúcio conversei com amigos e vi o mar. E misturei-me à algazarra acolhedora, alimentada a frango de churrasco e bom vinho português, do amigo Fernando de Coloane.

 

A alegria ensurdecedora dos panchões…

A “limpeza” simbólica, pessoal e colectiva, dos resquícios da vida velha, para que a vida nova renasça sem mácula. O combate decisivo da humanidade, pelo menos uma vez por ano, contra os maus espíritos, os que afectam os corpos e também e (talvez) sobretudo as almas.

Eu, ignorante, me confesso… o Novo Ano Lunar de 1997 foi como que o meu baptismo simbólico, os meus primeiros passos, hesitantes, para compreender o mistério e a densidade cultural desta civilização multimilenar que eu praticamente desconhecia.

Familiarizado, pelas sucessivas geografias da minha vida passada, às realidades de África e da Europa, nada sabia, de facto, de gente que conta doutra maneira as histórias do tempo e do espaço. Que doutra maneira se liga ao invisível e conversa com os antepassados. Gente dotada de uma presciência, muito particular, para caminhar em direcção ao futuro. Povo antigo com espírito novo. Como os anos seguintes iriam revelar.

As danças do Dragão e do Leão sugeriram-me combates que eu não aprendera na escola. Os milhares de caracteres da caligrafia chinesa – que desafiavam a minha imaginação, e em que infelizmente não me iniciei, apesar de tentativas tímidas – passaram a constituir outras tantas chaves de entendimento, para portas que eu não conseguiria abrir.

A alegria ensurdecedora dos panchões passou a constituir desde logo, na minha memória, o sinal sonoro inequívoco de que é preciso espantar os maus espíritos, para que tudo recomece em harmonia.

E outras festas de Ano Novo aqui passei, na companhia de muitos amigos, uns já desaparecidos (Joaquim Morais Alves, Henrique Senna Fernandes, tantos outros) e muitos mais ainda entre nós, felizmente.

Para além do gosto dos saborosos manjares da data festiva, ficaram-me na memória lugares particulares (o Casino Lisboa…) e trechos esparsos de conversas. Que ocuparam o tempo, consolidando amizades. E de tudo isso se constrói a saudade.

Mas uma imagem vívida se me impõe, dos dias festivos do início do novo ano. Refiro-me à corrida aos templos, o odor fortíssimo do incenso, as preces silenciosas no meio da multidão. Tanto que se pede, e tanto ou o pouco o que se recebe, de quem habita lá em cima, conforme a Sorte!

 

Malhas que o império teceu…

E assim se foram tecendo, de forma quase imperceptível, os meus laços pessoalíssimos com Macau. Este porto de abrigo para os reais “boat people” do Vietname, que o nosso querido e saudoso Padre Lancelote adoptou com sentido pragmático de solidariedade cristã. Ou para gente sofrida de muitas histórias de vida, como os timorenses de que era pastor e guia esse outro amigo que já partiu, o Padre Xico.

Passaram vinte e um anos desde que celebrei o meu primeiro Ano Novo Lunar em Macau. Decorridos os primeiros três anos da RAEM, a vida prosseguiu para mim por outros caminhos. Mas aqui regressei, cumprindo o vaticínio associado à Fonte do Lilau.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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