O Nosso Tempo

Da “inutilidade” de Deus

Foi o encontro o menos preparado e a conversa a mais imprevista, a deste Verão, com pessoa conhecida com quem, pelas voltas que a vida dá, não falava há muitos anos já.

Homem seco, não muito alto, Armando Silva abeira-se dos oitenta anos com dignidade, o porte erguido de uma árvore que, no pedaço de chão que lhe coube, soube espraiar as raízes no melhor húmus. Ou não tratasse ele a terra por tu, ele que durante a infância e a adolescência, com as suas mãos e o seu suor, a desbravou.

Não ficou por aí todavia, por essa forçada vocação de lavrador, os dons com que a natureza o contemplou. Armando amou e ama a música e pratica-a. Inventou mesmo uma guitarra simplificada, com que deu novas tonalidades ao seu grupo coral, de inspiração popular. E faz poesia que guarda numa gaveta, demasiado tímido para a submeter ao olhar severo dos estranhos.

Carpinteiro e contabilista, ou contabilista e carpinteiro, conforme o acento tónico, posto numa ou noutra profissão, nas diversas estações da vida, o herói desta crónica alinhou números nas colunas do dever e do haver, com a mesma mestria com que construiu portas e janelas e mesas e bancos. Armando o que fazia, deleitando-se com o que lhe saía do espírito ou das mãos. Acariciando os números com o olhar. E acariciando a madeira com as mãos calosas do seu mester. Mas Armando Silva voou muito mais alto, na sua exigência como pessoa. E estudou sobretudo a Bíblia.

Durante quarenta anos o nosso homem desbravou, de fio a pavio, o Antigo e o Novo Testamento, nas frias noites beirãs ou nas mais acolhedoras do inverno lisboeta, onde viveu duas décadas, lá para os lados das Portas de Benfica. Examinou então detalhadamente a personalidade dos líderes do povo eleito, dos reis dos profetas, da justiça de Deus e, diria: sobretudo, das muitas cóleras de Deus. E, mais do que tudo, escalpelizou a relação íntima de Deus com os homens. Para chegar finalmente a Ele.

Ao grande Criador do Bem … e, segundo Armando, ao grande providenciador do Mal. Porque, para ele, Deus ou se enganou no modelo de Criação, ou mente aos homens desde o princípio dos tempos, oferecendo-lhe o Bem e envenenando a oferta com o Mal. Porque quem consente o Mal, sendo o Todo-Poderoso, é co-responsável por ele, já que o podia evitar.

Mas estou claramente a antecipar-me.

 

Conversa na aldeia

Armando veio ver-nos à aldeia, acompanhado das prendas que, segundo a tradição, é impensável recusar. Da sua magra pensão lá trouxe o espumante e um bolo para celebrar o encontro. Pois celebrámos.

Mas, no decorrer da conversa, vieram à fala as coisas da religião. Misturadas com episódios da sua vida que eu conhecia de maneira incompleta. E uma simples frase bastou para definir o rumo da conversa: «– Sabe, eu fui um desgraçado toda a vida. E para ser desgraçado não preciso de Deus».

E lá contou as suas desgraças, desde o casamento desfeito com a mulher que lhe deu seus filhos, até à auto-exclusão de uma seita religiosa em cuja hierarquia progredira, até posição de destaque. Seita onde se deparou com invejas e ciúmes, despeitos e malquerenças, como se da leitura quotidiana da Bíblia o grupo não retirasse senão os maus exemplos do povo eleito, na sua rebeldia e ingratidão para com o Criador.

«– Quis sempre saber tudo de Deus e por isso estudei a Bíblia durante quarenta anos. Mas não deixei de ser sempre um desgraçado, sem sorte no trabalho como na família. Até casei nos casamentos de Santo António, sabe, mas não me veio daí nenhuma protecção!».

Repeti lentamente para comigo a frase-chave: “Para ser desgraçado não preciso de Deus”. Outros diriam o oposto, pensei: preciso de Deus porque não passo de um desgraçado. Mas não Armando Silva. E tentei ver, naquele homem inteligente, a aproximar-se dos oitenta anos, o que estava errado.

No olhar vivo havia sinais de quem tudo queria abarcar com o intelecto, e menos com o coração. Porque queria compreender, mais do que sentir. A morte não o assustava. Tinha procurado o Além durante toda a sua vida e não o encontrara. Estava resignado.

Apostrofava Deus porque O considerava responsável pelo mal que lhe acontecia. Mas mais do que isso talvez, condenava Deus por não lhe permitir conhecer tudo, compreender tudo. Compreender Deus.

Esgrimia com o intelecto como um jogador de xadrez, mas todo ele estava frio, como se indiferente já ao resultado do jogo.

«– O Armando ainda reza?», perguntei a medo.

«– Não, não rezo. Não tenho religião. Estudei várias e são todas o mesmo. Deus, Deus, e o mal. Mais do que o Bem, o Mal. Ele o criou, Ele tem prazer em fazer sofrer aqueles que criou. Que sentido tem tudo isto?».

Falei-lhe da liberdade que Deus dá ao homem, liberdade que Deus respeita totalmente. Disse-lhe que os crentes, por causa dessa liberdade, não são uma comunidade de robots, esses sim telecomandados pelo inventor. Mas uma comunidade de homens livres. Falei-lhe da humildade que nós temos que ter, infinitamente pequenos que somos, para com o Infinitamente Grande.

«– Como é que, pequeníssimas gotas de água que somos, queremos compreender o oceano todo?», perguntei.

Nada o demoveu. Armando encontrara a sua verdade. E dessa verdade não seria expurgado, como o fora de tantas coisas na sua vida. Aquela pelo menos era coisa sua.

Não fui capaz de, naquela ocasião, confesso, penetrar na muralha das suas certezas. E do orgulho com que as coloria. Nem tive imaginação para o convidar a olhar a Criação e a própria realidade de Deus com a capacidade que a criança tem de se maravilhar. O intelectual seria insensível a esse argumento piegas. Só o mental o movia.

Deplorei Armando na sua solidão. E prometi-me a mim mesmo continuar a conversa logo que a vida o permita.

E sem querer terminar este texto de maneira fácil ou feliz, não deixo de me recordar que, por alguma razão fundamental, Jesus falou das crianças como falou. E do seu olhar maravilhado sobre tudo o que existe.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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