O Nosso Tempo

A santa e os diplomatas

Uma e outros a pensar nos mais pobres.

Aliás, poderia esta crónica ser intitulada de outra maneira: quando a política e a diplomacia valem a pena…

Passo a explicar-me. Na semana em que o Santo Padre canonizou, na Basílica de São Pedro, a Madre Teresa de Calcutá, decorreu na China, como se sabe, e exactamente em Hangzhou, a Cimeira do chamado G-20, as vinte economias mais fortes do mundo.

O que tem a ver uma coisa com a outra ? – perguntarão os meus leitores.

É que acontecimentos de natureza tão diversa têm a ver, ambos, embora de modo totalmente distinto, com o escândalo da pobreza extrema no mundo.

A Madre Teresa entregou totalmente a sua vida, como se sabe, aos mais pobres dos pobres. E, num novo ímpeto de consciência, traduzido em feliz iniciativa político-diplomática, o Presidente Xi Jinping e o seu Governo propuseram a inclusão dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentado na agenda do G-20, como uma das suas prioridades.

Desse modo, quer pelo testemunho fortíssimo de uma simples freira albanesa, tornada, no decurso das décadas, numa referência universal de humanismo e compaixão sem reservas; quer pela acção dos representantes dos Estados, numa conferência internacional, precedida por muitas outras, a questão magna da pobreza extrema no mundo impõe-se, sem apelo, à consciência de todos, e impele-nos à acção.

E digo nós porque no fórum das organizações da sociedade civil dos vinte países tal prioridade fui saudada e, se possível, reforçada.

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O caminho espiritual que marcou a jornada terrestre da Madre Teresa ficará para sempre gravado como uma estrada de luz, mas também de muita penumbra, e de muita solidão pessoal, no meio da multidão dos mais deserdados.

Ela própria terá confessado o peso desse Deus mudo que parecia não ouvir ou não responder aos seus queixumes de uma alma frágil, num corpo débil.

Todavia, e sem que se sentisse sempre iluminada por luz vinda do alto, a figura vulnerável, vestida de branco e azul, ia constituindo para muitos, nas ruas miseráveis dos bairros de lata, a última esperança de poderem nascer com aconchego ou morrer com dignidade.

Mas nunca se sabe, exactamente, a que atalhos interiores obriga a procura de Deus. Não se podem contabilizar as dores não expressas, as dúvidas que há na Fé, a luta interior que se trava para continuar a cumprir o chamamento.

Morta há quase duas décadas, a freira de Calcutá é cada vez mais um farol para a alma generosa dos que acodem ao seu apelo. E o legado aí está: um respeito absoluto pela dignidade humana, expresso nos momentos cruciais da criança que nasce com braços para a acolher; ou no velho que morre, de mão dada com quem o conforta.

A santa que sobe aos altares para veneração de todos é antes de mais a síntese dos milhares de pequenas histórias pessoais de que foi protagonista e que ficarão esquecidas para sempre.

 

Fazer das fraquezas… forças

Mas refiro-me agora, nesta minha tentativa de sublinhar o que há de profundamente ético no que parece só político, à Cimeira do G-20 e aos Objectivos do Desenvolvimento Sustentado que o grupo assume como seus.

Os políticos e os diplomatas não têm que ser crentes ou santos. Mas quando bem conduzida pelo melhor que pode produzir a consciência colectiva, a sua acção transforma instituições, práticas e mentalidades. E isso é o mais nobre da acção política.

O escândalo da pobreza extrema – e de todos os males que lhe estão associados, na saúde, na educação, na família, no emprego, na simples atitude de como interpretar o mundo – brada aos céus!, numa economia global que tanto produz, tanto de supérfluo cria, e tão mal distribui o essencial.

E foi preciso ter-se escrito, em Declaração solene, o que é esse essencial (os objectivos do milénio e os que se lhe seguiram, do desenvolvimento sustentado) para, desde o ano 2000, se mobilizarem políticos, diplomatas, técnicos, e sobretudo voluntários no terreno, para se minorar a sorte dos que nada têm.

Nunca o simples cidadão comum poderá aceitar, como natural ou inevitável, como mero imperativo de uma duvidosa racionalidade económica, o fosso crescente entre ricos e pobres, fenómeno que não anatemiza nenhum país em particular, pois é, infelizmente, comum a todos.

Se é afinal o sistema que está mal, que se altere o sistema… Observações como esta, proferidas pelo Papa Francisco (considerado por certos círculos na América como um perigoso esquerdista) levaram certos gurus nova-iorquinos ao veredicto definitivo: o Chefe da Igreja Católica não percebe nada de economia. Ponto final.

A reacção desses críticos equipara-se, isso sim, ao fundamentalismo religioso, só com um deus diferente: o mercado.

Mas quem vai pagar o esforço adicional que acarreta este novo ímpeto social, diria mesmo humanitário, do G-20?

Sabe-se que os Estados por si só não têm capacidade financeira para enfrentar tantos desafios e com tal dimensão, à escala planetária… Mas os grandes grupos económicos multinacionais têm hoje cada vez maior consciência de que não são, não podem ser apenas máquinas de fazer dinheiro, a distribuir pelos accionistas, mas são entidades com responsabilidade social proporcional aos seus ganhos. Ganhos fabulosos, diga-se de passagem.

E obtidos como? Com o dinheiro dos clientes/consumidores que somos todos nós.

E é nessa mesma linha de considerações que a evasão fiscal tem de merecer a mais severa reprovação de todos. E uma atitude cada vez mais coordenada dos Estados, na sua prevenção e repressão.

 

Pobres sempre haverá…

É uma expressão bíblica que, se mal interpretada, pode levar à passividade mais resignada ou ao cinismo irónico de quem já está desculpado, pelo Alto, por nada fazer. Isto no plano individual.

Mas não podem beneficiar de tal desculpa nem os Estados, nem as Organizações Internacionais em que se agrupam.

Qualquer análise, mesmo a menos fina, dos conflitos do nosso tempo, converge em concluir que a miséria, o desemprego, a ignorância por causa do analfabetismo ou a iliteracia são fonte de todos os males. Dos conflitos religiosos ao extremismo que os instrumentaliza.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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