O nosso tempo

Simples aldeia, sem muros

Quando nos transferimos, provisoriamente que seja, do anonimato quase desumano das grandes cidades para a dimensão comunitária dos pequenos povoados, vilas, aldeias, parece que a vida assume a sua real dimensão. Que quero eu dizer com isto?

Que a alegria e a tristeza se sucedem com toda a naturalidade, como o Sol e a chuva, o Verão e o Inverno. Que a amizade e a desavença se inscrevem, de forma mais real, no ser pessoa. Que sucessos e desgraças são capítulos que se alternam no grande romance da existência. Que a vida e a morte parecem mais vizinhas uma da outra.

Enquanto a grande cidade agiganta artificialmente o homem, dando-lhe a ilusão do poder de condução do seu destino, a vila ou a aldeia ainda hoje reduzem-no à vulnerabilidade da sua condição finita.

A igreja e o cemitério, habitualmente próximos, são os lugares onde as interrogações são mais ansiosas e as verdades são mais duras.

É que, enquanto as luzes artificiais de supermercados e parques de diversão sugerem a eternidade (as cidades que nunca dormem são a expressão disso mesmo), a proximidade com a natureza recorda dolorosamente o quanto e como nos situamos na brevidade do tempo.

Ninguém engana o olhar penetrante do Sol. Ninguém retarda o seu nascer e o seu desaparecer por uma noite. Ninguém adia a chuva ou detém o vento.

Na aldeia tudo isso sente-se mais, a voz da natureza é mais perceptível, os seus alertas mais audíveis, os seus imperativos mais urgentes. Assim, quase todos os aldeões são mais cautelosos e realistas. Temperam mais o sucesso de um instante com a previsível fatalidade que espreita na outra dobra do caminho.

Medem eles melhor a fatalidade, como parágrafo obrigatório de um texto que não escreveram. E quem não pensa assim e não sente assim é mais tolo…

E essa mesma sabedoria das realidades naturais é aprendida também a observar directamente as plantas e os animais, cada ser com a sua vida própria, e esta com suas regras e exigências.

Nascer, crescer, reproduzir-se e morrer, antes de se tornarem tópicos de filosofia ou temas para ficção literária, são manifestações da Natureza que perpetuamente se renova.

Ir tentar apreender a vida, a partir dos escaparates das livrarias, tem menos significado do que pressentir a essência das coisas passeando o olhar pela paisagem distante ou tocando, por acaso, a superfície rugosa de um tronco de árvore.

As pedras insignificantes dos caminhos valem mais do que os monumentos erguidos à memória dos homens.

As flores do campo são delírios de fragrância e cor. Daí se parte por isso, mais depressa, para a poesia…

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Atravesso ruas desertas, onde as crianças não brincam porque os pais as levaram para os países longínquos onde labutam.

Dou-me a olhar longamente casas desoladas onde já houve vida, mas cujos donos já partiram para a viagem sem regresso que a todos espera.

Cabeças de idosos, desconfiados, assomam a janelas estreitas para ver quem passa.

Saúdo como quem pede desculpa, pela intrusão num mundo só deles.

Nesse mundo habitam histórias de vidas que nunca conhecerei e mistérios da relação dos homens com a terra que serão para mim sempre estranhos. Tenho pena já de me sentir tão incompleto.

O primo já afastado, octogenário, com que me cruzo na rua, tem este ano melhor aspecto. No ano passado, por esta altura, foi de ambulância com sirene estridente prestar contas aos médicos do percurso de oitenta anos bem medidos.

«– Vai melhor?», pergunto para encurtar a distância entre vidas que nunca se cruzaram, se não em breves instantes como este.

«– Em as pernas querendo…», respondem-me.

E o vizinho que saúdo agora, parente também e, ao que consta, com larga carreira como militar, dirige-se de tractor às suas propriedades próximas, para tarefa que me explica brevemente e que finjo perceber.

Aceno muito e compreendo menos. Este não é, claramente, o meu mundo. E no entanto é, nesta minha tentativa de abraço que é o viver simplesmente, viver lado a lado, estar no mesmo barco, na mesma viagem da vida. Partilhar por breves instantes o presente. O ser. O estar.

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As aldeias e vilas de um país de emigrantes têm ramificações nos quatro cantos do mundo.

Os emigrantes chegam. Passados os momentos iniciais de boas vindas, os de fora tentam ajustar-se ao quotidiano rotineiro dos que sempre estiveram, dos que nunca saíram ou dos que já regressaram para ficar.

Reajustam-se mal ou não se acomodam já. No seu horizonte, que se alargou, misturam-se às da sua aldeia natal as ruas de Paris ou os subúrbios de Düsseldorf, os recantos do Luxemburgo ou os canais de Antuérpia.

A própria língua é menos fluida, as palavras prontas do idioma estrangeiro mais óbvias, a ponte entre dois mundos mais difícil de cruzar.

A pátria é assim, durante todo o ano, uma grande saudade da pátria. Com referências afectivas a um mundo que não existe já para os mais velhos, ou que nunca existiu para os mais novos.

Por isso, durante algumas semanas no Verão, a pátria converte-se num brevíssimo encontro com a realidade de um mundo fragmentado, caleidoscópio, onde os pés apesar de tudo reconhecem ainda o chão de sempre.

A grande aventura da emigração tem os seus rituais anuais durante o Verão, com o reaprender incessante de uma identidade que escapa e que já não se pode por isso transmitir aos filhos, tal qual.

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Visto da minha aldeia o mundo lá fora é incerto e perigoso. Mas ouso sair da protecção imaginária, de muralhas que não existem, e regressar a realidades mais familiares.

Chego a casa de um passeio matinal e sintonizo as televisões estrangeiras. As aldeias hoje não escapam à CNN, à Euronews, à Aljazeera.

Entre os campos, hoje pouco semeados, e o mundo virtual da comunicação permanente pouca distância há. As pontes têm que estar dentro de cada um…

Que ouço, que vejo? Mais uma vez, as vicissitudes incompreensíveis de um mundo que agoniza, à espera de um novo nascimento.

Da minha aldeia, o mundo é de facto muito perigoso.

Carlos Frota

Universidade de São José

 

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