No Passeio dos Ingleses
Tem este título uma dupla conotação, nos limites da crónica de hoje, que não desejaria desrespeitadora da memória e do sofrimento das vítimas da tragédia terrorista de Nice, no último dia 14 de Julho.
Daí uma primeira reflexão sobre o ataque de que foram vítimas tantas dezenas de pessoas inocentes, nessa cidade, tão celebrada internacionalmente, do sul de França.
Depois, e num quadro já mais distendido proponho, ao sabor das notas e observações pessoais que fui rabiscando, proponho, dizia, um breve regresso à transição política a que se assistiu em Londres, na sequência do Brexit, e que levou à saída de cena de David Cameron e à ascensão de Theresa May à liderança dos Conservadores e do Governo.
Derrota anunciada
Mas começo pelo tópico mais doloroso: Nice, 14 de Julho, a Festa Nacional Francesa. As cenas dramáticas que as televisões repetem sem cessar.
No que penso, ao ver as imagens das televisões francesas? Desde logo no óbvio. Que o terrorismo – e nomeadamente o que assola a nossa época – tem a terrível consequência de provocar feridas profundas, muitas vezes irreparáveis, nas vidas anónimas de pessoas simples, que nenhum propósito especial anima, senão o de simplesmente viverem.
Sabe-se que é essa fluidez do alvo que converte crimes que seriam de mera delinquência comum, em autênticos actos de guerra, e portanto em crimes de guerra.
E a guerra (que passa do discurso religioso a outro, isto é, do espiritual ao político) está de facto no centro mesmo da ideologia terrorista, que converte em acção “militar”, em larga escala, de efeitos exponenciais, o que não passaria de criminalidade “normal” em sociedades que, por melhor organizadas que sejam, nunca a conseguem extirpar completamente.
A primeira reacção, como consequência do acto terrorista, é o medo que provoca e a alteração no quotidiano das sociedades, em termos de segurança.
Mas não só as autoridades reagem, como as próprias populações atingidas recusam ser, com o decurso do tempo, reféns de uma certa obsessão do medo e do perigo.
Em sociedades onde o culto da liberdade individual, muito mais do que a reacção colectiva, faz parte da herança genética de cada um, não se está a ver que a intimidação vença.
Mas aqui também o colectivo importa. E a reacção unânime de apoio às vítimas, acto contínuo ao ataque, é prova de que a sociedade no seu conjunto reage, saudavelmente, ao que é de facto uma ameaça colectiva.
Divórcio alegre
Foi um outro passeio dos ingleses, uma caminhada política original, desde os corredores mais conhecidos da pertença à União Europeia, até às avenidas novas desse outro “lugar no mundo” que Theresa May prometeu gizar para o seu país.
Que lugar, que missão será essa? Como será a Grã-Bretanha daqui a uns anos? Manterá a unidade que agora caracteriza o Reino Unido? Fragmentar-se-á em nações totalmente soberanas, embora formalmente ligadas à Coroa, como acontece com tantos países da Commonwealth? A cissiparidade originará, pelo contrário, sistemas republicanos ao lado da monarquia inglesa?
Na Irlanda do Norte já se sabe que assim será, se houver integração do Ulster no sistema político de Dublin.
Mas nem os britânicos são falhos de recursos intelectuais para se reinventarem (foi a expressão frequentemente usada no actual contexto), nem a sua economia soçobrará às trepidações desta saída imprevista do espaço integrado europeu. O pragmatismo fará o resto.
De modo que prevejo no futuro um Reino Unido fora da UE e cada vez mais… dentro da Europa! Tudo a obrigará a isso, com pleno acordo dos parceiros do continente: da geopolítica à geoeconomia…
Aliás, pelo tempo que durar a sua actuação como ministro, o exuberante Boris Johnson não deixará de dar do seu Governo a imagem colorida, risonha e pouco convencional que transpira da sua pessoa, a contrariar as incertezas do momento que se vive (e que ele em parte, falaciosamente, criou); e sobretudo a contrastar com a austeridade que se adivinha na nova inquilina do 10, Downing Street.
Presente envenenado o de Theresa May, este de oferecer o ministério da “diplomacia” ao desbocado (perdoe-se-me a franqueza) Boris Johnson? Os jornalistas não o perderão de vista, disso pode estar certo o novo “foreign secretary”! E se as gafes se sucederem às gafes, para além do despedimento com ou sem aviso prévio, será punido pelos homólogos dos outros países com o pior castigo em política, e particularmente em política internacional: a irrelevância!
E a nova era começa com uma inovação, principalmente para consumo interno, no discurso da nova Primeira-Ministra, que os comentadores não deixaram de assinalar.
É que, pela forte mensagem social das suas primeiras palavras, imediatamente depois da audiência com a Rainha, a Senhora May confundiu todos, a tal ponto de se ter dito que ela terá lido o discurso errado, o que qualquer líder trabalhista faria!
A política como arte…
…de gente bem disposta!
Quem assistisse, nos Comuns, à última sessão do ex-PM, de questões ao Primeiro-Ministro, diria que não tinha havido drama nenhum, que David Cameron estava ali de pedra e cal e que a senhora sentada a seu lado era apenas mais uma colega de Governo.
O ambiente era quase de festa, as piadas das duas bancadas cruzavam-se no ar, o “speaker” observava uns e outros com o olhar menos admirado do mundo.
Até o contestado líder trabalhista, Jeremy Corbyn, que “perdera” o referendo tanto como o PM, ali aparecia, acutilante e cheio de humor, estando embora a sua liderança a ser contestada na pior zanga trabalhista desde há muitas décadas.
Só que David Cameron perdera o referendo e perdera o poder, batendo dois recordes ao mesmo tempo: o mais jovem político a ascender à chefia de um Governo no seu país… e o mais jovem a ficar desempregado! E a senhora a seu lado ocuparia, poucas horas mais tarde, o seu lugar em Downing Street, depois da brevíssima passagem de ambos por Buckingham Palace.
No dia seguinte estava formado o novo Governo, continuando vencidos e vencedores, recém-nomeados e recém-despedidos, a demonstrar a mesma fleuma. Para usar uma expressão bem nossa: fleuma… só para inglês ver?
Claro que para além desta coreografia perfeita fica o essencial, o mais sério, o que em política interessa mais e que é: Como todas estas transformações, tão mal geridas politicamente, se vão reflectir na vida das pessoas?
Carlos Frota (*)
(*) Universidade de São José