O nosso tempo

Lesbos: os rostos e os nomes

Os refugiados têm rostos e têm identidades próprias. São pessoas individuais e não meros dados estatísticos. Não são apenas mãos anónimas que ostentam certificados ou salvo-condutos – e, infelizmente, só uma ínfima fracção pode fazê-lo.

Estas ideias, incessantemente repetidas pelo Papa, dominaram o meu espírito ao escrever o texto que se segue.

O problema dos refugiados na Europa está inevitavelmente ligado à percepção europeia do Islão, condicionada esta por sua vez pela sua instrumentalização pelos grupos radicais, ISIS, Al Qaeda e companhia.

Há dias tive uma melhor noção disso ao ouvir um debate sobre o tema numa estação de rádio.

O ponto central da discussão era o de saber se monumentos de dimensão e significado mundial, como é o caso da catedral de Andaluzia, dado terem pertencido em épocas passadas a outro quadro religioso e civilizacional (no caso de Espanha, o Islão) não deveriam ser abertos ao culto de todos, evoluindo assim do seu estatuto actual de templos católicos.

A minha reacção imediata foi a que se me afigura a mais óbvia: se tal raciocínio faz parte de uma estratégia de relativismo religioso, estou em profundo desacordo. A menos que vigorasse um princípio geral de reciprocidade e que, por exemplo, na grande mesquita de Istambul, a antiga Constantinopla, fosse admitida a mesma prática…

Islão. Preconceito. Receio…

Quando o Papa foi à Ilha de Lesbos, na companhia do patriarca Bartolomeu, chefe da Igreja Ortodoxa Grega, e pelo arcebispo Jerónimo, vimos gestos comoventes, como era inevitável que acontecesse, naquele quadro de desespero.

Com o pano de fundo de um lindíssimo dia de sol, o céu azul e a beleza sem par do oceano, o sofrimento colectivo e individual bem espelhado em cada rosto.

E num gesto simbólico que correu mundo, através da Comunicação Social internacional, o Papa levou consigo, de regresso ao Vaticano, doze refugiados de religião muçulmana, três famílias com várias crianças e pessoas idosas.

Muçulmanos no Vaticano? – muitos terão pensado. Não é início de um assalto, simbólico bem entendido, ao “sanctus sanctorum” do Catolicismo? Preconceitos… medos… ressentimentos… suspeitas…

A mensagem estava todavia dada, representando um guia para a acção humanitária urgente e estava também indicado o essencial: acolher para salvar o maior número, com dignidade e respeito.

Com a ênfase adicional: os crentes de outras religiões comungam da mesma e essencial humanidade.

E isto, perante a hesitação de Governos, paralisados por dissensões internas e submetidos ao jugo de opiniões públicas cada vez mais reticentes.

Governos que fazem contas ao quanto vão gastar, para não beliscarem o conforto relativo das respectivas populações e com olho nas sondagens para não comprometerem as suas possibilidades de vitória nas próximas eleições. Tudo o que de melhor e de pior as democracias têm para dar…

E populações sujeitas ao efeito corrosivo das mensagens xenófobas dos partidos de extrema-direita, anti-muçulmanos, anti-árabes, anti..estrangeiro.

A identidade europeia (por eles definida) está em perigo, proclamam.

A Europa das catedrais está em risco de ser submersa pela Europa das mesquitas, repetem. O berço da civilização europeia está na democracia ateniense e no iluminismo de filósofos e cientistas, insistem.

Tudo isso é verdade, naturalmente – e tudo isto é incompleto. Porque a outra herança, muçulmana, existe também, estando toda a questão em saber não em quem domina quem, mas como podem coexistir pacificamente, no quadro da liberdade de crença.

É todo o desafio das sociedades plurais, onde a crença religiosa – todas as crenças religiosas – faz(em) parte do elenco de liberdades fundamentais, rigorosamente consagradas de resto nos textos constitucionais.

 

O olhar das crianças

Reflectir aqui sobre o que antecede é esboçar o pano de fundo em que ocorre sobre uma das questões magnas do nosso tempo e que está no centro das preocupações da Europa. Cujos líderes políticos se debatem com a situação dos refugiados, milhares de seres humanos que aportam todos os dias às ilhas gregas, vindos da Síria e de outros países, em guerra ou em situação de precariedade extrema.

Os últimos desenvolvimentos da crise dão entretanto conta de uma imensa ramificação do problema, com origem na Líbia, a braços, como se sabe, com a tragédia gravíssima de inexistência de instituições de um Estado digno desse nome.

Procurei o contexto mais amplo possível desta iniciativa do Pontífice, na linha dos seus ensinamentos, do seu ministério, para desbravar o significado profundo do gesto e suas eventuais consequências.

Não foi difícil enquadrá-la, naturalmente, na coerência do Cristianismo de que o Papa é hoje a versão mais moderna, mais inovadora, porque na fidelidade mais rigorosa ao intemporal.

E dada a grande força mediática das suas visitas, perguntei-me também em que medida é que a mensagem do Papa conseguirá penetrar nos muros de hostilidade, de preconceito e de receio que se vão erguendo um pouco por toda a Europa, perante a presença massiva de pessoas vindas daqueles cenários de crise.

Refugiados: o olhar das crianças. A interrogação angustiante dos adultos. Porquê?

 

A mensagem

A mensagem do Papa é inequívoca e é dirigida aos círculos do poder mundial, governantes, organizações internacionais e sociedade civil. E poderia ser resumida em três ideias fortes:

acabar com as situações de conflito que estão na génese da tragédia;

abrir as portas da Europa aos que perderam tudo;

acelerar os processos de reconstrução dos países afectados.

Tudo isto é naturalmente mais fácil de dizer do que de fazer: “o diabo está nos detalhes”, como dizem os anglófonos. Mas quais são os “detalhes” aqui?

No que diz respeito à cessação dos conflitos, mormente os da Síria e da Líbia, a questão desdobra-se em várias dificuldades que têm sido objecto de negociação, as mais das vezes infrutuosas: como fazer com que as grandes potências renunciem a estratégias de domínio e acentuem convergências, para acabarem com a tragédia humanitária? Como unirem-se no combate eficaz ao ISIS, Al Qaeda e seus afiliados?

Como darem voz aos cidadãos desses países, a população civil afectada pelas lutas fratricidas e cuja solução extrema é fugir para poder sobreviver?

 

Recomeçar a conversar

Não há muito tempo os Presidentes Putin, Obama e Rouhani do Irão, separadamente claro, visitaram o Papa no Vaticano. Esse dever de cortesia assume para mim uma intenção menos cristalina: irem legitimar agendas nacionais junto do chefe da Igreja Católica, cuja autoridade moral é universal.

Reconhecendo a relevância internacional deste pontífice, muitos líderes mundiais vão ao Vaticano buscar a legitimidade suplementar e a respeitabilidade que em muitos sectores lhes é questionada.

Pela sua aposta em soluções militares quando elas não serão nunca “soluções” por serem militares ou só militares.

Mas há um lado muito positivo nisso: é que pode ser utilizada a favor do diálogo e da negociação. E é essa a perspectiva em que o Santo Padre, naturalmente, se coloca.

Ouvir todos. Incentivar todos ao diálogo e às verdadeiras soluções de paz.

A diplomacia da Santa Sé poderá superar bloqueios que são difíceis de remover nas relações entre Estados?

Carlos Frota (*)

(*) Universidade de São José

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