O nosso tempo

Os nossos Bairros do Cerco

Porto, 11 de Março de 2016. Na originalidade do estilo que o vai caracterizando, como Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa esteve no Porto, como se sabe, estendendo à Cidade Invicta as cerimónias de inauguração do seu mandato presidencial.

Vendo em directo a reportagem da sua visita à capital do Norte, e observando o seu contacto espontâneo, aberto e dialogante com as centenas e centenas de pessoas que o acolheram, mormente no Bairro do Cerco, não pude deixar de reflectir. E de me questionar mais uma vez sobre o que é ser-se hoje cristão em política, pergunta que se aplica particularmente ao novo chefe de Estado português que se assume como católico, com a espontaneidade e o desassombro que revela, em muitas ocasiões, nas mais variadas dimensões da sua intervenção cívica e política.

É que Portugal mudou muito, como muito mudaram as sociedades europeias, caracterizadas já de pós-cristãs. Sociedades pulverizadas em múltiplos sistemas de valores, por um lado; e por outro, dominadas por um quase pessimismo de fim de civilização, por mais que receemos considerar tal perspectiva.

E como pano de fundo de tudo isto, mais três características deste tempo que é o nosso: o sentimento agudo da marginalização política, económica e social para o maior número; um materialismo consumista que ainda torna mais dolorosa a privação de bens de consumo essenciais, e por maioria de razão os supérfluos, pelos mais pobres; e a ideia, crescentemente difundida, de que tal estado de coisas não resulta de nenhuma fatalidade do sistema político-económico mas é deliberado, aproveitando a uma minoria ínfima à escala global. O tal um por cento, contra os noventa e nove por cento…

 

Na Praça dos Afectos

Um Presidente, rodeado de gente pobre, num bairro degradado da periferia do Porto. Ouvindo com um sorriso de simpatia quatro ou cinco jovens do bairro, cantando o desespero do seu não reconhecimento como cidadãos de pleno direito. De jovens sem futuro, a oscilar entre a droga e outras formas de criminalidade, porque a sociedade lhes fecha todas as portas.

«Isto não é uma visita de Estado! É a continuação da campanha eleitoral!», apressaram-se a dizer alguns líderes, ainda despeitados pela derrota clamorosa dos seus próprios candidatos…

Mas o que poderia levar a gente pobre esse novo Presidente que não se assume – claramente não se assume – como protagonista de qualquer forma de populismo demagógico que aliás denunciaria (chamou-lhe sebastianismo), poucas horas antes, no seu discurso da Câmara Municipal?

Por entre os ciúmes óbvios de gente que gostaria de ver o seu partido a monopolizar os afectos de gente carenciada, proletária como dizem, Marcelo foi ao Bairro do Cerco levar o bem mais precioso que se pode dar a pessoas discriminadas e que há muito terão perdido a esperança: a importância da sua igualdade como cidadãos. Teórica igualdade, vazia de conteúdo, essa?

Mas recordar direitos inegociáveis não será a melhor forma de os começar a respeitar? E de chamar a atenção de outros, nomeadamente os demais responsáveis políticos, para atenderem a pessoas que estão no extremo da lista de vulnerabilidade humana?

E quanto ao futuro, a mensagem-pedido foi para os jovens, para que não se resignem. E a sua tentativa de partilha foi ao ponto de ensaiar uma letra de sua autoria, na linguagem desses artistas do desespero!

É pouco? É uma mão cheia de nada, como muitos serão tentados a considerar? Não estou de acordo. Quando as sociedades vão sobrevivendo de forma fracturada, quando as desigualdades marcam a vida do maior número, como acontece em Portugal e em tantas sociedades ocidentais, apesar de “desenvolvidas”, só o discurso unificador, sincero e não propagandístico ou comicieiro, pode servir de primeiro cimento, para futuras convergências. E o novo Presidente transmite esse sentido de transparência e convicção pessoal que são hoje mais necessários do que nunca, para ajudar a converter pessimismo, derrotismo, numa nova dinâmica de auto-confiança e de criatividade colectivas.

Mas aquelas convergências têm que ser, imperativamente, traduzidas em políticas. E aí, mais uma vez, só um Presidente que se não detenha em estéreis afrontamentos ideológicos consegue fazer sobressair as vantagens de um saudável pragmatismo que pense mais na vida das pessoas do que na adopção de um qualquer figurino economicista, mesmo que ditado pela lógica ditatorial dos grandes centros de decisão internacionais.

Vem-me à memória a imagem do “bom aluno” da Europa. Em Portugal, quis-se ser exemplar, aos olhos das instâncias europeias e internacionais, à custa dos mais pobres.

Pena foi que François Hollande não tenha assumido mais cedo a alternativa de uma opção anti-austeridade que agora e só agora parece querer esboçar.

 

Do Vaticano se avistam…

…os nossos Bairros do Cerco…

Marcelo Rebelo de Sousa faz a sua primeira visita oficial ao estrangeiro escolhendo o Vaticano. Coincidência? Certamente não! Simbólico? Certamente sim… Também o nosso Presidente não escapa à sedução desse líder religioso pouco comum que é o Papa Francisco.

Que benefícios traz tal aproximação para o mandato presidencial que se inicia? Serão muitos os que resultarão de uma espécie de inspiração, de uma atenção constante do chefe de Estado às disparidades sociais no nosso país, do que quaisquer outros benefícios tangíveis.

Benefícios outros nem o Papa os pode dar, nem o Presidente esperaria obtê-los… Os tempos são outros. Longe vão as épocas em que uma bula pontifícia criava um país ou anatemizava um líder. Hoje são bem diversos os entendimentos. E usando uma linguagem mais familiar, para os crentes é outra a maneira de Deus escrever direito… por linhas tortas…

Imagino o encontro dos dois homens. O sorriso aberto. A mensagem que passa. E a noção de que, bem diversas que sejam, na sua natureza intrínseca, as missões de ambos, têm duas características que as irmanam: primeiro a transitoriedade. Ambas estão inscritas num tempo curto, uma pelos ditames da natureza, a idade do Pontífice; e outra pela duração imposta pela constituição política do nosso país.

O que se terão dito Marcelo e Francisco? Não é difícil antecipar.

Surpreenderia a muita gente o quão simples é a conversa entre pessoas que consideramos grandes, qualquer que seja o ponto de vista. Não passam de pessoas “como as outras”, desde logo no modo de falar e de procurar entender e ser entendido…

Francisco tem uma conversa cuja simplicidade a todos toca. O jesuíta, doutor em Teologia, foi por escolha pessoal mais frequentemente o frequentador de bairros de lata do que dos meios académicos.

E o professor de Direito já demonstrou que não receia misturar-se com a arraia miúda e partilhar as preocupações de gente simples. E passa com facilidade da abstracção dos conceitos ao concreto que é como podem os pobres garantir o pão de todos os dias.

O centenário das Aparições de Fátima, no próximo ano, farão com que o Presidente convide o Papa a visitar oficialmente o nosso país, não apenas como o líder da Igreja Católica, mas como chefe de Estado. E aí teremos Francisco a dirigir-se a todos os sectores da sociedade portuguesa, os crentes e não crentes, aos pobres de todos os Bairros do Cerco que infelizmente temos e aos poderosos que salvaguardaram lá fora as suas fortunas…

Carlos Frota 

Universidade de São José

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