Encontro em Havana.
Este título parece conotado com algum romance de espionagem ou policial, mas não é…. Mal refeitos da boa surpresa do encontro de Outubro do Papa Francisco com as Igrejas luteranas, chegou a notícia da sua reunião com o líder da Igreja Ortodoxa Russa, o Patriarca Cirilo (Kirill).
Vivem-se actualmente tempos extraordinários, neste misto de temor e esperança que caracteriza a nossa época. Desde logo, no campo económico e social. E, depois, no domínio religioso que é a outra dimensão essencial de vida, desta nossa comum humanidade.
A economia e a sociedade. Por um lado países, outrora pobres e dependentes, a darem mundialmente cartas na economia, na ciência e tecnologia, na crescente influência cultural e proximamente até nas disciplinas desportivas mais populares. E por outro, potências outrora poderosas e ditando os destinos do mundo, através dos seus impérios, hoje com os seus líderes, ministros, embaixadores, enviados especiais, a correr de um lado para outro, entre capitais, mormente de antigas colónias, a forjar febrilmente novas possibilidades de relacionamento. Para quê?
Para salvar as suas indústrias da bancarrota, garantindo-lhes a solvabilidade de vastos mercados como os seus já não são, na competição agressiva e impiedosa da economia global. Para garantir empregos, num sistema produtivo que dispensa largos segmentos da população jovem, com consequências sociais muito inquietantes. E tudo para manter o nível de vida e a estabilidade política, num mundo já diferente – que nunca mais terá o seu centro no eixo euro-atlântico.
Por um lado ainda, a religião, as religiões, e os combates em nome delas, como a agenda historicamente atrasada de um projecto político, social, cultural obsoleto, o do jihadismo, construído com as armas do terrorismo suicida, num Médio Oriente que não se consegue curar das suas múltiplas feridas de séculos. As feridas religiosas, intra-islâmicas e as outras. Com as das relações do Islão com o mundo.
E as propiciadas pelos recursos do petróleo, alimento da soberba de tantos dirigentes árabes e não árabes, e moeda de troca de negócios chorudos, com as indústrias de equipamentos militares de tantos países “respeitáveis”, os mesmos cujos dirigentes têm o discurso dos Direitos Humanos tão perto da boca como longe do coração!
Paradoxos do nosso tempo
Muitas vezes me tenho interrogado sobre as alterações geo-estratégicas de um petróleo definitivamente baixo… e a queda do pedestal, em catadupa, de tantos líderes que bem pouco fizeram de tanta riqueza, a favor das respectivas comunidades nacionais.
Se há escândalo verdadeiramente gritante, na vida internacional, é o do subdesenvolvimento no Médio Oriente, raramente denunciado como tal, como merecia.
A reconstrução da Síria, tema da recente conferência de doadores em Londres, vai ser assegurada por que países? É interessante ver a lista e tirar as respectivas conclusões. E se muitos de fora da região aparecem, examine-se a má consciência de alguns deles! Saliento, por oposição, a genuinidade inspiradora da Noruega, autora da iniciativa e fiel à sua tradição de uma diplomacia activa e respeitada.
O Papa e o Patriarca
Por outro lado ainda, o caminho hesitante da reconciliação e da tentativa de unidade entre cristãos, depois de séculos de divisões que alimentaram ódios e justificaram guerras na Europa.
O Papa Francisco e o Patriarca Cirilo, num encontro em Havana. Quem diria? O Catolicismo, quer dizer, o universalismo de Roma, a tentar a reconciliação plena com a ortodoxia liderada por Cirilo, esteio do nacionalismo russo, ou mais amplamente, eslavo.
E Cuba, como o improvável palco desse encontro! Quem diria? Cuba, a mesma que foi por décadas a central do ateísmo ideológico, num hemisfério com múltiplos focos de vigorosa revolta anti-yankee – hoje a anfitriã de um reencontro histórico, atrasado de mil anos, entre líderes religiosos nos antípodas do credo revolucionário castrista!
O sucesso da mediação discreta, pela Santa Sé, da separação de seis décadas, entre cubanos e americanos, criou espaço a um relacionamento amigável do Papa Francisco com o sucessor de Fidel, o seu irmão Raúl, actual Presidente. Ou foi a empatia inicial do Papa e o seu crescente respeito internacional que determinaram o sucesso da mediação. Quem sabe?
Mesmo para os que não tenham da História uma visão providencialista, pode dizer-se, de forma ainda que apenas simbólica: Deus escreve realmente direito por linhas tortas! Como nos recorda o ditado popular.
Os obreiros da unidade, e os outros…
Com o actual pontífice, o esforço de unidade entre os cristãos ganha assim uma nova e inesperada velocidade. E vislumbra-se já uma estratégia, nestas diferentes dinâmicas do jovem pontificado de Francisco, com as tentativas paralelas de aproximação da Santa Sé às outras grandes religiões. E, antes de mais, às diferentes denominações, em que se tem fragmentado, historicamente, a Cristandade.
Que estratégia pois? Com que objectivos?
O regresso à unidade entre cristãos justifica-se por si própria. Desde logo, do ponto de vista evangélico, a separação entre cristãos brada aos céus, é escandalosa, como escreveriam os autores bíblicos!
Porque estando tal unidade no cerne mesmo da Mensagem (“pelo amor uns pelos outros sereis reconhecidos”) a desunião é da responsabilidade de todos. E a todos condena. Tanto os que não tentaram tudo para a ultrapassar, como os que a têm recusado e continuarão possivelmente a recusá-la.
Os obstáculos? Muitos: o da tradição e o da cultura. E o dos interesses instalados. As divisões aproveitam sempre a alguém. E, por isso, haverá sempre também alguém apostado em trabalhar pela divisão, contra a reconciliação.
Os obstáculos culturais ou político-culturais, à unidade entre cristãos, na Europa e nos Estados Unidos, não serão pequenos, também.
Mesmo que o Secularismo, hoje dominante no Ocidente, tenha grandemente atenuado o recurso à religião, como dimensão da identidade nacional (países protestantes vs. países católicos), o Islamismo e a violência a ele associada podem fazer despertar sentimentos adormecidos, de antiga identificação religiosa contra tal violência. Só é de temer que esse discurso do regresso à autenticidade “cristã” europeia, seja esta definida como for, venha a ser apropriado pelo extremismo anti-democrático, xenófobo e por isso anti-islâmico.
Como resultado possível deste esforço de unidade protagonizado pelo Papa Francisco, não se está a ver para amanhã, nem para depois, o surgimento de um bloco mundial de países cristãos, como tantos outros blocos, de justificação conjuntural, na vida internacional.
Num processo de reaproximação, que será lento e cheio de obstáculos e revezes, poderá pelo menos esperar-se, desejar-se, que a progressiva interacção entre hierarquias religiosas das diferentes denominações cristãs, bem como de grupos de cristãos leigos mais esclarecidos, conduza a uma cada vez maior convergência de pontos de vista, sobre questões essenciais de sociedade, no nosso tempo, para que possam exercer depois uma influência eficaz coerente, nas suas próprias comunidades de origem.
As nossas sociedades precisam desse contributo. Como de pão para a boca.
Carlos Frota (*)
(*) Universidade de São José