Papa Francisco e Patriarca Kirill mil anos depois do grande Cisma

«Chama-me e eu vou!».

Aeroporto Internacional José Martí, em Havana, Cuba. Sexta-feira, 12 de Fevereiro de 2016. O Papa Francisco a caminho do México, em viagem apostólica (entre 12 e 18 de Fevereiro). 1054, Istambul, antiga Constantinopla, o Grande Cisma no Cristianismo: rivalidade, desconfiança, excomunhão mútua, divisão, ruptura no seio da Igreja. Quase mil anos depois, o Papa romano, Francisco, e o Patriarca de Moscovo e de Todas as Rússias, Kirill (Cirilo), encontram-se no mais inusitado dos lugares para um reencontro quase milenar: Havana, no aeroporto, em Cuba. Não apenas se encontram, mas fazem-no de forma fraterna, amiga, cristã. E assinam mesmo uma declaração conjunta. Já lhe chamaram o encontro do milénio, neste ano em que se comemora também os 500 anos da reforma perpetrada por Lutero.

Muito já se falou deste encontro, ainda que tão recente. Mas o que aconteceu nestes quase mil anos para tornar esta reunião histórica e tão marcante? É um compromisso com a paz, para a unidade dos cristãos, de defesa dos cristãos no Médio Oriente e um manifesto unânime de luta contra o terrorismo. Sem dúvida. Mas qual o contexto histórico e religioso que lhe confere grandeza e sentido? É o primeiro e único encontro entre os líderes de dois principais ramos do Cristianismo desde a separação de 1054. Francisco desde há muito que mostrara interesse num encontro como este, em particular desde 1054. Em 2014 proclamou-o em Istambul, quando revelou a sua conversa telefónica com Cirilo. O Papa romano exclamou então ao Patriarca moscovita: «Irei onde quiseres. Chama-me e eu vou!» E foi. A Havana, na passada sexta-feira, 12 de Fevereiro. O tempo novo que é a Quaresma fica ainda mais singular e marcante com este encontro e tudo o que dele resultou. E resultará. Mais do que acaso neste encontro, houve também estratégia, aliás o comprova o padre Lombardi, SJ, porta-voz da Santa Sé.

A história da Europa alimenta a cisão entre as duas Igrejas. Os números valem o que valem: dos cristãos no mundo, 2 184 060 000, 1 094 610 000 são católicos, fiéis a Roma, 260 380.000 são ortodoxos, boa parte deles sob a alçada espiritual de Moscovo, de Cirilo portanto (ao todos, mais de 130 milhões de fiéis). Mas a história europeia alimenta a cisão, logo o encontro não podia ser no Velho Mundo. Nem nos EUA. Cuba é uma nação com grande população católica, historicamente também. E é importante para a Rússia, dada a sua antiga aliança com a União Soviética, com Moscovo, o seu maior aliado nas Américas. É neutro, oficialmente ateu, actualmente. O porta-voz do Vaticano recorda, porém, que foram necessários quase dois anos de preparação. Os analistas consideram Cuba como um lugar ideal, pela hospitalidade, com uma minoria ortodoxa, sem a carga de “experiências negativas e dramáticas” para ambos os ramos cristãos. As anteriores tentativas frustradas de João Paulo II e do Patriarca Alexis II em diversas hipóteses de lugares da Europa mostram a complexidade e o fardo da história na preparação de um encontro como este.

 

As causas do Cisma

Nem a inimizade dura para sempre, augura-se dizer agora. Foram só duas horas de cordialidade, fraternidade, diálogo inter-religioso, mas o passo foi enorme para começar a superar a divisão desde a data simbólica de 1054. Este ano foi o culminar de um processo, foi o ano da excomunhão mútua do Papa romano e do Patriarca constantinopolitano.

A concepção de autoridade é uma das diferenças entre católicos e ortodoxos. As diferenças culturais já existiam então, havia séculos, entre os romanos latinos e os orientais de cultura helenística e língua grega. A confrontação porém ultrapassava as diferenças de língua e cultura. Além das distinções rituais, as questões teológicas e doutrinárias, como o conceito de purgatório e a denominada “controvérsia trinitária”. Esta consiste no seguinte: enquanto no Ocidente se crê e reza ao Espírito Santo que, segundo as correntes teológicas ocidentais, “procede do Pai e do Filho”, já os ortodoxos prescindem da figura do Filho no Credo. Trata-se da questão do Filioque (“e do Filho”), base de tentativas de aproximação entre Roma e as Igrejas ortodoxas autocéfalas, como no concílio de Florença (1439). «Uma única palavra gerou concílios, guerras, mal-entendidos, por ela se pelejou durante quase mil anos», referiu o vice-reitor da Pontifícia Universidade de Santa Cruz em Roma, padre Philip Goyret. No que concerne ao Purgatório, os católicos incluem-no seu credo, enquanto etapa onde as almas purgam os seus pecados antes de acederem ao Paraíso. É desconhecido entre os Ortodoxos. Refira-se que a fé ortodoxa se fundamenta nas definições dogmáticas dos sete primeiros concílios ecuménicos, ou seja, até ao de Niceia em 787.

 

Questões de autoridade e de poder

É um dos temas chave desta relação tensa: a forma distinta de entendimento da função de quem manda na Igreja. O Papa de Roma é reconhecido como Patriarca, mas é-lhe recusado o primado. A sua função é entendida como de máxima figura de autoridade. Mas os ortodoxos não entendem assim. Estão divididos em quatro patriarcados e quinze Igrejas autocéfalas. A maior parte usa o rito bizantino, herdado de São Basílio e São João Crisóstomo. O Patriarca de Constantinopla, por exemplo, actualmente Bartolomeu, considera-se como “primeiro entre iguais”, o que lhe dá certa proeminência, mas não jurisdição ou primado sobre as Igrejas ortodoxas.

Existem diferenças culturais e hierárquicas, na natureza do pão eucarístico ou no casamento dos padres, mas também se pode desenhar uma questão de poder a marcar a diferença. Mesmo depois de se terem levantado em 1965 todos os anátemas e excomunhões recíprocas que geraram o Cisma. Mas, como diz Goyret, o conflito é uma questão de conflitos de poderes também, fonte de tensões. Os ortodoxos reagiram contra o expansionismo ocidental no séc. XI, hoje contra o pretenso proselitismo católico, que foi secundarizado face à ortodoxia na Europa de Leste.

Mas deu-se o encontro. Que dará frutos. Para superar mil anos de desinteligências, tensões e diferenças.

Vítor Teixeira (*)

(*) Universidade Católica Portuguesa

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