As caricaturas da Fé
Perante mais uma chocante irreverência do semanário satírico francês Charlie Hebdo, com conotação anti-islâmica, a rainha Rania da Jordânia respondeu com um cartoon da sua própria autoria, pondo em causa o autor do desenho inicial. Entra-se assim num novo nível do debate público sobre temas muito sérios, onde os “cartoonistas” são confrontados no seu próprio terreno, com as mesmas armas.
Será esta a boa táctica contra o Charlie Hebdo?
Escrevi parcialmente o texto que se vai seguir por ocasião do primeiro aniversário do ataque terrorista ao semanário satírico francês, mas decidi retê-lo mais algum tempo, para tentar superar, o melhor possível, o meu agastamento pelo desrespeito que o citado periódico cultiva, por tudo quanto diga respeito a crenças que norteiam as vidas de milhões de seres humanos.
A primeira página do número publicado por ocasião do Natal de 2015 afigurara-se-me mais uma vez chocante, mas sem reacção contra, confirmando a tese geral de um anestesiamento gradual das consciências – a que no ocidente se chama “consenso democrático”.
Liberdade de expressão ou liberdade de ofender? Liberdade de ficar calado ou liberdade de dizer “não!” – transgredindo o sagrado dogma do politicamente correcto?
É este todo o debate. Porque o terrorismo das imagens é pernicioso, e o que o semanário pratica é isso mesmo, o terrorismo das imagens.
Charlie Hebdo: as caricaturas da Fé
Há um ano – como nos recordamos todos – a redacção do Charlie Hebdo foi atacada por um grupo de terroristas, reclamando-se do integrismo islâmico que liquidou grande parte dos jornalistas desse periódico e suscitou, justamente, uma onda de indignação e de repulsa, em todo o mundo.
Neste aniversário lúgubre sobre um crime hediondo, o Presidente francês François Hollande recordaria, em cerimónia pública evocativa das vítimas (mormente as das forças de segurança) que o seu país foi particularmente visado em 2015 pelo terrorismo islamista, pagando assim um elevado preço pela sua participação no esforço de combate ao ISIS, na Síria. Recordou inevitavelmente também os ataques de 13 de Novembro e o seu trágico rol de 130 mortos e perto de quatrocentos feridos, numa só noite de loucura assassina, pelos extremistas.
Como é que os sobreviventes do Charlie Hebdo, entretanto, sempre fiéis ao seu estilo provocatório, decidiram recordar o ataque de que foram alvo?
Com uma caricatura de Deus, na primeira página, munido de uma espingarda, numa confusão inadmissível entre o Criador – objecto de culto das mais variadas religiões no mundo – e os fanáticos que abusivamente O invocam, como razão justificativa do seu combate sangrento.
O Osservatore Romano reagiu – e bem! – contra esta grosseira e deliberada confusão, sublinhando a falta sistemática de respeito do jornal pelas crenças de milhões de fiéis, das mais variadas crenças religiosas.
E o jornal do Vaticano sublinha, com justeza, a ditadura (esta palavra é minha) do politicamente correcto, como força que torna acríticos os que deveriam reagir, e isto em nome de um secularismo anestesiante.
Celebrou-se de facto, à saciedade, a violação da liberdade de expressão. Mas nem uma palavra para os seus excessos, não digo no momento, mas depois, com os ânimos mais serenos e fazendo a retrospectiva sobre a provocação (as provocações) gratuita(s) do jornal.
Condenando inequivocamente o acto terrorista, eu não quis na altura suscitar a questão oportuna da gratuitidade da provocação, para separar águas entre o que é condenável sem nuances (terrorismo) do que é ofensivo e reprovável, num plano já diferente, mas essencial – que é o do respeito pelos outros.
Aprendi há muito que a liberdade tem que se auto-limitar, sob pena de se converter em arma letal no desrespeito da liberdade dos outros. Não me consta que esse princípio tenha sido revogado, desde logo pela instância suprema que é o bom senso.
Coloquei-me instintivamente no ponto de vista dos fiéis das religiões visadas, sempre que via o Charlie Hebdo nos escaparates, quando vivi em França. E sempre me chocou a falta de escrúpulos do referido periódico, ao ferir a sensibilidade de quase todos, em nome de não sei que sabedoria superior que pretende dar lições de vida aos “subdesenvolvidos que ainda crêem nas religiões”.
A pedagogia da descrença, por este meio – o do terrorismo das imagens – é a pior das pedagogias, pois não provoca a dúvida em quem crê, mas a sua indignação e mesmo a cólera. Reforçando, mesmo em pessoas moderadas das várias crenças, e são a esmagadora maioria, ressentimentos que doutro modo não seriam suscitados.
Nunca me passou pela cabeça, como cristão, ridicularizar judeus e muçulmanos pela pela proibição da carne de porco na respectiva dieta alimentar, nem aos hindus desrespeitá-los pelo culto da vaca e por proibição dietética semelhante, por razões por assim dizer opostas.
Para além de um grupo de irreverentes que cultivam a provocação pela provocação, quem são e o que representam esses caricaturistas profissionais do Charlie Hebdo?
Representam-se a eles mesmos, naturalmente. Só é pena que o seu impacto mediático seja desmesurado. Estou a sugerir que uma qualquer milícia anti-secular encerre o jornal, pela calada da noite? Certamente que não.
Mas estou a pensar, de forma geral, na necessidade de cidadãos mais críticos que comecem a não aceitar tudo, nas democracias, sem receio do politicamente incorrecto… Que reajam aos abusos da liberdade de Imprensa, em nome dessa mesma liberdade, isto é, do respeito de todos, por todos.
O direito à descrença? É perfeitamente legítima a descrença, ou a não crença. As diversas expressões do ateísmo ou do agnosticismo têm a sua razão de ser, como manifestações da liberdade do espírito humano. Não se pode impor a Fé, qualquer Fé. E se esta é uma verdade de tempos relativamente recentes, não tendo sido sempre observada no decurso da História, converteu-se há muito, nas sociedades não tiranizadas pela intolerância, como em várias do Médio Oriente, em direito fundamental da convivência entre todos.
Entre o apelo ao diálogo entre religiões – com a condenação firme do terrorismo – e a provocação gratuita de crenças e valores, vai uma imensa distância.
Carlos Frota
Universidade de São José