Sem pálio… nem guarda-chuva!
Leio de uma qualquer enciclopédia ou dicionário na Internet e transcrevo tal qual: «No contexto religioso, o pálio é mais comum na liturgia católica, sendo um dossel ou sobrecéu portátil, um tecido que é sustentado por quatro ou mais varas. É usado em cortejos ou procissões para abrigar o sacerdote em questão ou o Sacramento que está sendo transportado».
Naturalmente, preciso menos da definição de “guarda-chuva”, embora o modo não literal desse vocábulo composto nos conduzisse bem longe da meteorologia e desse ocasião a saborosas expressões, até na política… Tanto o guarda-chuva é usado para protecção! Para o disfarce! E para defesa, quando à falta de melhor é utilizado contra o atacante repentino, não raro nesse mundo urbano de outros lugares, muito menos hospitaleiros do que Macau.
Pois se o pálio e o guarda-chuva têm implícita essa ideia comum de protecção, contra as intempéries naturais ou simbólicas, a que propósito tal título para esta crónica?
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O nosso Papa Francisco é um saudável homem deste tempo que recusa a protecção do pálio… e mesmo do guarda-chuva, para se proteger dos riscos do debate de ideias, aceitando pois molhar-se no confronto de perspectivas contraditórias, sobre o que interessa aos homem e à sociedade contemporânea.
Recusa simbolicamente o pálio quando o dogma não é dogma. Recusa simbolicamente o guarda-chuva quando nas questões susceptíveis de debate aceso diz a sua convicção, sugerindo maior reflexão e procura dos que se ficaram, mesmo dentro da Igreja e principalmente dentro dela, pela facilidade das posições não questionadas.
Intramuros ou extramuros, o Papa está no seu múnus apostólico. A sua palavra conta para milhões de pessoas. E é todavia contraditado por não poucos. Intramuros e extra muros.
Neste contexto e pela simples razão de ser quem é, o Papa está no centro dos grandes debates do nosso tempo.
Uma das chaves do nosso tempo…
Tentar conhecê-lo melhor é pois fundamental porque o seu posicionamento pode ser a chave para muitas respostas. Dentro e fora da Igreja. Se fosse só dentro da Igreja, o mundo não lhe dava tanta importância, nem a Comunicação Social internacional o perseguia como o faz.
E persegue-o não com a fidelidade dos crentes – perdoe-se-me a imagem que só enaltece a persistência dos paparazzi – mas com o faro certeiro dos perdigueiros caçadores…
Os olhos dos media concentrados no Vaticano não são motivados pelo exotismo da liturgia católica romana, pelas cores dos trajos cardinalícios ou pela bizarria das fardas da guarda suíça, recriando um tempo que já passou. É o que diz ou não diz o Papa que conta. Como diz. Por que diz.
E não invoco aqui, mesmo indirectamente, qualquer saber oculto de que o pontífice fosse por ventura portador, qual terceiro segredo ainda por revelar. Falo da perenidade de uma mensagem simples, difundida pela primeira vez por um simples carpinteiro, de sandálias sujas pelo pó dos caminhos, mas com uma capacidade extraordinária de permanente actualização.
É necessário pois analisar honestamente as qualidades desse homem singular – simplesmente Francisco – que a transmite nos dias de hoje e segundo a linguagem deste tempo. Até porque marca já a sua época como, retrospectivamente sabemos, João Paulo II marcou a sua.
E o que vemos? O falar franco, a extrema simplicidade e modéstia do porte, o olhar directo de quem não joga o jogo da ambiguidade.
Conhecer o mundo
E, todavia, este retrato de candura autêntica não limita os observadores atentos, mesmo os não crentes (principalmente estes, diria…) que não correm o risco de o subestimar no plano da cultura e do intelecto.
O gosto pelo saber acompanhou-o sempre e, no contexto de uma Igreja com seus nichos e microcosmos (humana est…) ter sido jesuíta é uma chancela de rigor.
Referindo o óbvio: toda a gente percebe que, na sua posição, o Papa é uma pessoa extremamente bem informada. Pelas estruturas das igrejas nacionais, pelos canais diplomáticos privativos da Santa Sé, pelos inúmeros encontros com pessoas de todas as origens e posições, o Papa conhece o mundo.
Mas também os líderes dos países conhecem o mundo. Os académicos conhecem parte do mundo, o seu mundo. As pessoas comuns pensam que conhecem o mundo…
Qual é então a diferença? Não é pelo seu perfil intelectual que o Papa é adulado por milhões hoje. É pela sua capacidade de transmitir um sentido de vida a essas multidões que dele se abeiram. Mensageiro privilegiado que seja, não é ele todavia “A Mensagem” – e sabe-o bem. Mas é um mensageiro que sabe dialogar. E quem dialoga ouve e fala. Aceita a contradição e respeita quem o contradiz. É essa qualidade que mais importa, essa missão de diálogo com o mundo que o faz distinguir-se.
Provas mais recentes desse diálogo estão na condenação sem ambiguidades da pena de morte, da corrupção e das máfias – males de quase todas as comunidades humanas, mas com peso especial nos dias de hoje…
E porquê? Porque, graças ao acesso generalizado à informação, nunca houve tanta gente, como agora, familiarizada com os efeito positivo ou nefasto das opções políticas, económicas, de sociedade. E com o papel positivo ou nefasto de instituições ou práticas que perduram na memória dos homens, fazendo com que se transmitam, de geração em geração, males de que as sociedades há muito deviam estar expurgadas. Corrupção e máfias, como a Camorra que Francisco foi de novo condenar no seu próprio terreno tradicional – a cidade de Nápoles.
Carlos Frota
Universidade de São José