Por um abraço ao Apóstolo.
O convite surgiu em jeito de desafio. «Vamos fazer o Caminho de Santiago?», perguntou-nos um amigo ao jantar. Perante a nossa hesitação, outra voz se fez ouvir: «Vamos! Ficamos no Parador dos Reis, mesmo ao lado da catedral…».
Já noutra ocasião este tema havia vindo à baila, mas agora parecia ser a sério. «Contem connosco!», respondemos com a certeza que dali a um ano – no Verão, em Agosto – regressaríamos a Portugal para gozo de mais um período de férias.
À boa maneira portuguesa, os preparativos para a caminhada tiveram lugar a poucos dias de apanhar o avião em Hong Kong – basicamente, roupa para proteger do Sol, um bastão e um boné. Chegados a Lisboa já havia quem se tivesse oferecido para levantar a nossa Credencial del Peregrino, documento obrigatório para quem deseja receber o certificado emitido pela Oficina del Peregrino no final da peregrinação. Na terceira página está estampado o primeiro carimbo com a chancela da Confraria do Apóstolo Santiago da Basílica de Nossa Senhora dos Mártires de Lisboa, com data de 13 de Agosto de 2018.
Seis dias depois, estamos bem cedo a embarcar na Gare do Oriente, com destino a Valença do Minho, sendo necessário mudar de composição em Campanhã, na cidade do Porto.
Da Invicta a Valença a paisagem é um regalo para os olhos, tal a simbiose entre o mar, os rios e as serras. Já no destino, um bem disposto taxista leva-nos à Pousada de São Teotónio, situada no interior das muralhas. A influência romana salta à vista. Tui, cidade espanhola, “cumprimenta-nos” do outro lado do rio Minho, como que nos convidando para uma visita.
PARTIDA
São 5 horas e 30 da manhã. Na recepção da pousada ultimam-se os preparativos. Na rua passa por nós o primeiro peregrino solitário. Para se chegar a Santiago de Compostela “basta” seguir as conchas e setas amarelas que se encontram por todo o percurso. Assim o fazemos em direcção a Tui.
Prestes a atravessar a ponte que liga as margens portuguesa e espanhola, trocamos as primeiras palavras com um casal – ele ucraniano, ela alemã. «Vimos desde o Porto», informam-nos com um certo orgulho pelos quilómetros já cumpridos.
O Caminho, outrora percorrido com roupa e calçado muito menos confortável, conduz-nos a vários lugarejos, sendo uma constante a passagem por capelas e igrejas (os albergues de antanho).
Não tardou muito para que chegássemos à serra, onde somos alertados para o que virá depois e nos próximos dias: «Agora é sempre a subir até começarmos a descer para Porriño. O percurso é quase todo assim até Santiago…». O Sol começa a raiar e diz o bom senso que está na hora de comprar água, colocar creme protector e digerir qualquer coisa. No cimo da montanha um café é ponto de paragem obrigatório. Há gente de todas as idades, levando-nos a questionar de onde terão vindo e o que os move.
Duas setas indicam a continuação da rota. A da esquerda tem escrito “Caminho alternativo”, a da direita “Caminho original”. Optamos pela segunda hipótese, da qual nos iríamos arrepender passados pouco minutos. O Sol aperta e há que “lutar” contra duas rectas que parecem infinitas ao olhar, ambas ladeadas por fábricas e armazéns. Estamos, pois, na zona industrial de Porriño, em plena comunhão com o asfalto, procurando não ser atropelados por algum camionista mais distraído. Agora entendemos porque a maioria dos peregrinos escolheu o caminho alternativo.
Porriño é hoje uma cidade industrial, não deixando de ter os seus “ex-libris”, como acontece com quase todos os lugares na Galiza. No edifício-sede da edilidade local estampamos o segundo carimbo do dia na Credencial del Peregrino.
Embora o habitual seja pernoitar em Porriño, decidimos enfrentar o calor em direcção a Redondela, estância balnear localizada do outro lado das montanhas. O vale onde nos encontramos é árido, escasseiam sombras e não se vê vivalma. Nos arredores de Mos, vegetação e alguns animais são as únicas formas de vida. Um idoso, montado numa motocicleta ou bicicleta (não nos recordamos ao certo), informa-nos que estamos a 500 metros de uma igreja, onde podemos descansar as pernas e comprar água. Se foram 500 metros, não podemos confirmar. O que sabemos é que nunca 500 metros nos custaram tanto a percorrer.
No adro da igreja uma peregrina chora sentada num banco. Por respeito, e porque não nos parece nada de grave, não questionamos o porquê de tal estado de espírito. Quando nos preparamos para retomar a passada, eis que chega um grupo de peregrinas que procura refrescar-se numa torneira instalada junto a um muro. Vêm dos arredores da cidade do Porto e – tal como nós – tencionam passar a noite em Redondela.
A subida para o cume da montanha faz-se por um trilho de terra batida, que terá sido alargado de modo a permitir a circulação de veículos. A descida, essa, é alcatroada, mas igualmente íngreme – “ideal” para quem sofre de dores nos joelhos…. Este é o troço mais penoso de que temos memória.
Em Redondela os albergues estão lotados e as pernas dificultam qualquer raciocínio que resolva o problema. Desistir está fora de questão. Há que tentar por todas as vias encontrar uma cama. Arriscamos perguntar numa farmácia por um albergue, pensão ou hotel. «Se continuar em frente vai encontrar uma estação de serviço da Repsol. A seguir há um albergue. Talvez tenham quartos», indicam-nos num tom amistoso.
Na gasolineira reafirmam a existência do tal albergue a cerca de dois quilómetros, o que nos faz desesperar por um táxi. Perante tal cenário, um jovem oferece-nos boleia. Ao aperceber-se de que somos portugueses, revela ser casado com uma portuguesa, filha de uma natural de Vila Nova de Cerveira. «Já lá estive algumas vezes. Gosto muito de Portugal!», afirma. Felizmente o albergue ainda tem um quarto, mas há um senão: temos de o partilhar com um casal de portugueses, que numa primeira abordagem não se mostra muito satisfeito com o arranjo feito pela dona do estabelecimento, acabando no entanto por entender a situação. A noite é passada ao som dos carros que circulam na estrada nacional, pois é impossível dormir com a janela fechada devido ao calor.
PRÓXIMO DESTINO: CALDAS DE REIS
São 5 horas e 40 da manhã. Está escuro como breu. Novamente na serra, vai-nos valendo uma pequena lanterna de bolso. Caso contrário, o trilho é uma ratoeira pronta a quebrar-nos um osso. Pontevedra é a meta a atingir. Em teoria o pior já passou, o que psicologicamente é uma mais-valia. As refeições (pequeno-almoço, almoço e jantar) limitam-se a barras energéticas e muita água. Numa das paragens para comprar o precioso líquido somos abordados por uma chinesa de Taiwan, estudante de restauração de arte em Barcelona. Fica feliz por ter encontrado alguém de Macau, procurando saber o máximo que pode sobre nós. Na mesma ocasião, o pai da família com quem partilháramos o quarto dá-nos os bons dias, prosseguindo de bicicleta até Santiago.
A quem não acredita na existência de bosques como os dos filmes da Walt Disney, garantimos que perto de Pontevedra há um bem semelhante. Trata-se, porventura, de um dos poucos troços do Caminho Português de Santiago que ainda mantém as característica originais. É entre árvores muito velhas que deparamos com os primeiros peregrinos em sentido contrário. «Estamos a fazer o Caminho de Fátima», esclarecem. De facto, os dois caminhos (Santiago e Fátima) coincidem, com a diferença do mariano estar indicado por setas azuis.
Em Pontevedra o café La Piedra serve de refúgio. Pedimos um café com leite. Se fôssemos politeístas, diríamos que era assim o leite servido aos deuses. É nestas ocasiões que damos valor às coisas mais simples da vida. Antes de deixarmos a cidade, visitamos a capela da Virgem Peregrina, onde estampamos mais um carimbo.
Ainda não é hora de almoço e Caldas de Reis está a poucas horas de distância, pensamos de forma ingénua, ignorando o facto de praticamente não haver sombra na maioria dos troços.
Atravessada uma serra esventrada pela linha de comboio, esperam-nos vários quilómetros de alcatrão e campos de vinha e milho. Por instantes temos a sensação de termos voltado ao sufoco de Porriño e Mos. Estamos novamente num vale e o Caminho parece levar-nos para a boca do Inferno. Procurar sombras torna-se o principal objectivo, embora haja quem ande ao Sol de tronco nu, contra todas as advertências da Organização Mundial da Saúde.
Havendo o propósito de chegar a Santiago de Compostela, muitos dos pensamentos são dirigidos ao Apóstolo. Afinal, o que aqui está em causa é a espiritualidade e a fé que se procura alimentar a cada metro conquistado. Quando faltam as forças, a oração é a melhor bengala do peregrino.
A poucos quilómetros de Caldas de Reis, um senhor – já reformado – proprietário de uma moradia cuja garagem transformou em boteco, oferece-nos guarida, café, vinho de produção caseira e o que mais quiséssemos. Ficamos pela água, a única bebida que verdadeiramente mata a sede.
A conversa com o nosso cicerone toca em vários assuntos, desde a preservação do Caminho Português de Santiago até aos movimentos independentistas em Espanha, passando pelas diferenças entre a Galiza e Portugal. A mulher aparece já quase no final da nossa “visita”, desejando-nos boa sorte para o resto da caminhada.
Cumpridos os agradecimentos e as despedidas, retomamos o passo, sendo que somos assaltados pela vontade de tomar a estrada nacional e assim encurtar a distância. Mas tal não é correcto e temos de cumprir o estipulado pelos primeiros peregrinos no século IX.
Caldas de Reis torna-se realidade ao final da tarde. Como prevíamos, os albergues estão lotados. Com a ajuda do recepcionista de uma estalagem encontramos quarto no centro da pequena cidade, ficando desde logo assente que no dia seguinte apenas iríamos andar meio dia, uma vez que os pés começam a dar os primeiros sinais de desgaste. Por agora há que repousar o máximo possível para se conseguir chegar a Padrón, localidade famosa pelos seus pimentos verdes.
A título de curiosidade, no albergue estivemos à conversa com um grupo de jovens portugueses, que por nós havia passado de bicicleta nessa mesma tarde.
No dia seguinte, bem dormidos, pelas 6 horas e oito minutos, deixamos Caldas de Reis e rumamos a Padrón, naquela que foi a etapa mais fácil de todo o Caminho e onde conhecemos um peregrino com apenas sete anos de idade. Ia acompanhado pelo avô, mãe e irmãos. Um exemplo para muitos!
Literalmente, Aquiles não esteve do nosso lado, pois uma bolha no calcanhar direito não permitiu terminarmos mais cedo. Ainda assim, a chegada a Padrón deu-se perto da hora de almoço, a tempo de carimbar a credencial no posto dos correios, comprar pensos na farmácia e, como não podia deixar de ser, degustar uma “porción” de pimentos padrón. A noite foi passada na Pensión Jardin. De destacar a hospitalidade e simpatia do casal de proprietários.
ÚLTIMA ETAPA
Talvez por sabermos que havia chegado o derradeiro dia, a alvorada foi mais cedo do que o habitual. Pelas 5 horas e 30 minutos saímos de Padrón e fazemo-nos à estrada que termina em Santiago de Compostela.
À semelhança do primeiro dia, o número de peregrinos é considerável, havendo quem aldrabe o percurso e opte por permanecer na estrada nacional. Embora a fadiga e as dores nos pés se façam sentir com mais intensidade, a vontade de chegar ao destino é maior do que tudo o resto.
Estamos em condições de revelar que o último dia foi aquele em que o significado religioso do Caminho esteve mais presente. Se noutros momentos a distância que faltava cumprir foi factor de desanimo, desta feita serviu de motivo encorajador. Só assim se explica que em Ames – concelho limítrofe de Santiago de Compostela – o rapaz que nos colocou mais um carimbo na credencial tenha dito que ainda faltavam oito quilómetros e tal informação não nos tenha afectado minimamente, embora soubéssemos que a partir dali seria sempre a subir até à cidade.
Numa das inúmeras ladeiras encontramos um casal de idosos da Irlanda do Norte, com quem trocamos algumas palavras, e que se mostram igualmente felizes por estarem prestes a concluir o Caminho.
Ver pela primeira vez a catedral de Santiago de Compostela, ainda que de longe, é a primeira grande emoção num espaço de quatro dias – sentimento que ajuda a dar resposta ao porquê de tantos milhares de pessoas deixarem o conforto das suas casas e atravessarem serras, vales, bosques, campos de cultivo e estradas secundárias, dia e noite, por vezes em condições adversas. Trata-se de um desafio pessoal em busca de paz de espírito, reforço da fé e superação dos limites físicos e mentais.
Os últimos quilómetros são calcorreados já dentro de Santiago de Compostela, por entre peregrinos e turistas, restaurantes, bares e lojas de recordações.
Na Praça do Obradoiro, de pé, em frente à imponente catedral, damos por concluída a peregrinação junto à concha que marca o início e o fim dos Caminhos de Santiago. Por ser Agosto, mês de férias por excelência, estão milhares de pessoas na cidade. O ambiente é descontraído e de festa, como gostam os “nuestros hermanos”.
Assim que houve oportunidade, entrámos no interior da catedral, onde cumprimos a tradição de abraçar a imagem de Santiago colocada no altar-mor, e visitámos a tumulo do Apóstolo.
Dado que andámos no mínimo cem quilómetros (foram 131,8 no total) a Oficina del Peregrino emitiu-nos o certificado, depois de conferidos os carimbos que fomos recolhendo durante o Caminho.
Uma experiência a repetir… com menos calor. Viva Santiago!
José Miguel Encarnação
Em Santiago de Compostela (Espanha)