Reencontro em Shwebo
A 1 de Maio, na carrinha episcopal conduzida por Patrick, seguimos caminho rumo a Shwebo para assistir às festividades do dia de São José. Afinal, na qualidade de carpinteiro, também o pai do Cristo mortal encaixava na fôrma moldadora da classe operária. Por essa altura, faziam-se em Shwebo as primeiras comunhões e os crismas, sendo imprescindível a presença do bispo. Ali estava de sotaina branca, no lugar do morto. Nos bancos de trás seguíamos nós – eu e o Dragon, um japonês que conheci na pensão e se interessara pela comunidade bayingyi – as duas ajudantes e três padres. A certa altura, um deles, que vivera bastante tempo nas Filipinas, sugeriu-me:
«– Devia enviar os artigos que escreveu sobre os bayingyis a um dos nossos irmãos que vive em Manila e dali emite um programa de rádio em Birmanês muito ouvido pela comunidade católica de Myanmar».
Em Sagaing, junto do conhecido pagode de Kaungmudaw Paya, que, reza a lenda, simboliza os seios de uma princesa, uma vez mais sobreveio o espírito jocoso dos bayingyis. Dessa vez, seria o bispo a pronunciar-se com uma sonora gargalhada:
«– Para ser mais fiel à lenda teria sido melhor mandar erguer dois pagodes em vez deste tão grande». Recorde-se que os seios pequenos encaixam no ideal de beleza da mulher birmanesa, e não o oposto.
Fiquei com a impressão de que estes “portugueses do Oriente” mantinham um sentido de humor bem mais aguçado do que nosso, podendo, por isso, ser considerados uma espécie de brasileiros do Oriente.
Separam Sagaing de Shwebo cento e vinte quilómetros de uma imensa e tórrida planície, amenizada por árvores de copa larga lançando sombra sobre os carros de bois que vagarosamente progrediam nos trilhos paralelos à estrada, devidamente assinalados pelas profundas marcas na terra batida.
O cenário era em tudo idêntico ao da minha anterior visita, dessa feita acompanhado pelo padre Kolay. O cenário e até os comentários que se faziam, sinal de que as coisas em Myanmar pouco mudavam.
Ao longe, as luzes acesas numas instalações militares mereceram de D. Alphonse o seguinte reparo:
«– Aquilo é uma verdadeira vergonha. Ao povo, retiram o direito a esse bem essencial que é a electricidade, mas quartéis e instalações militares estão sempre alumiados, mesmo durante o dia».
- Alphonse expedia as atoardas acompanhando-as de uma risada, onde se adivinhava desprezo pelos governantes.
«– Não é por falta de recursos energéticos que há racionamentos de energia», comentava, por sua vez, Patrick, que continuava a ultrapassar carros de bois e carrinhas atafulhadas de pessoas, animais, cestos e sacos de todo o tipo e feitio. «– Com isto, a junta limita-se a testar a capacidade de resistência do povo. Estão a ver até onde podem ir. Se notam que a revolta está iminente, cedem algo para contentar a populaça. É a política da corda apertada, que vai sendo gradualmente afrouxada».
Nas bermas da estrada avistavam-se bidões de gasolina amontoados com tubos de borracha ao dependuro, à espera de uma beata acidental para explodirem com todo o fragor. O preço tabelado desse combustível era de 180 kyat por galão, mas ali vendia-se a 320.
Para evitar despesas extras e, sobretudo, paragens desnecessárias nos afamados postos rodoviários de controlo, adoptámos vários estratagemas. O primeiro era o recurso à roupeta clerical, recuperando a vetusta imagem do missionário, que naquelas bandas ainda impunha respeito. Havia sempre a possibilidade de os funcionários serem católicos e fazerem vista grossa. Como segunda alternativa, um de nós, estrangeiros, punha-se a fotografar, e o indivíduo na guarita ficava tão confuso que simplesmente nos mandava avançar. O terceiro e último estratagema, por sinal o mais eficiente, consistia em seguir na peugada de uma qualquer caravana VIP (potentes todo-o-terreno que se faziam anunciar por sirenes e estridentes apitadelas).
Era noite quando entrámos no terreiro iluminado da igreja de Shwebo. Sob um toldo, junto ao centro paroquial, dezenas de devotos assistiam a uma missa. Eram maioritariamente mulheres, de véu branco na cabeça, iluminadas por quatro lâmpadas fluorescentes colocadas junto a uma estátua de São José com o menino ao colo.
«– Se tivessem chegado umas horas antes teriam presenciado à procissão. Foi pena», dizia-nos, finda a eucaristia, o jovem cura de etnia karen, que viera substituir Anastasius Sun.
Nesse mesmo local, ano e meio antes, ouvira o polémico padre reafirmar o seu orgulho em ser português e criticar duramente o bispo, que era agora massajado por uma das suas assistentes enquanto a outra lhe abanava um pequeno leque por cima da cabeça.
Todas as atenções se concentravam no arcebispo de Mandalay, visivelmente extenuado.
«– Tive de afastar algumas das pessoas que vieram beijar-me o anel enquanto decorria a missa», confidenciou, mostrando-mo, com uma pedra preciosa incrustada, à qual parecia não dar grande valor.
Aliás, D. Alphonse dava a impressão de ser algo avesso às hierarquias. Quando lhe perguntei qual era a mais importante figura da igreja católica em Myanmar, aludiu à existência de três arcebispados e a «essa estúpida mania que as pessoas têm de criar líderes». E mais não dissera.
Fazia um calor aflitivo, mas o terreiro continuava animado; estava previsto um espectáculo de variedades e por isso viera gente da cidade, entre a qual inúmeros budistas, inclusive monges e monjas.
«– Entre nós é assim. Partilhamos as festas, independentemente do credo de cada um», explicava Patrick.
Joaquim Magalhães de Castro