1º DE JANEIRO DE 2024
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E PAZ
No início do novo ano, tempo de graça concedido pelo Senhor a cada um de nós, quero dirigir-me ao Povo de Deus, às nações, aos Chefes de Estado e de Governo, aos Representantes das diversas religiões e da sociedade civil, a todos os homens e mulheres do nosso tempo para lhes expressar os meus votos de paz.
1. O progresso da ciência e da tecnologia como caminho para a paz
A Sagrada Escritura atesta que Deus deu aos homens o seu Espírito a fim de terem «sabedoria, inteligência e capacidade para toda a espécie de trabalho» (Ex., 35, 31). A inteligência é expressão da dignidade que nos foi dada pelo Criador, que nos fez à sua imagem e semelhança (cf. Gn., 1, 26) e nos tornou capazes, através da liberdade e do conhecimento, de responder ao seu amor. Esta qualidade fundamentalmente relacional da inteligência humana manifesta-se de modo particular na ciência e na tecnologia, que são produtos extraordinários do seu potencial criativo.
Justamente nos alegramos e sentimos reconhecidos pelas extraordinárias conquistas da ciência e da tecnologia, graças às quais se pôs remédio a inúmeros males que afligiam a vida humana e causavam grandes sofrimentos. Ao mesmo tempo, os progressos técnico-científicos, que permitem exercer um controle – até agora inédito – sobre a realidade, colocam nas mãos do homem um vasto leque de possibilidades, algumas das quais podem constituir um risco para a sobrevivência humana e um perigo para a casa comum.
Por isso, torna-se necessário interrogar-nos: quais serão as consequências, a médio e longo prazo, das novas tecnologias digitais? E que impacto terão elas sobre a vida dos indivíduos e da sociedade, sobre a estabilidade e a paz?
2. O futuro da inteligência artificial, por entre promessas e riscos
Os progressos da informática e o desenvolvimento das tecnologias digitais, nas últimas décadas, começaram já a produzir profundas transformações na sociedade global e nas suas dinâmicas. Os novos instrumentos digitais estão a mudar a fisionomia das comunicações, da administração pública, da instrução, do consumo, dos intercâmbios pessoais e de inúmeros outros aspectos da vida diária.
A pesquisa científica e as inovações tecnológicas não estão desencarnadas da realidade nem são “neutrais”, mas estão sujeitas às influências culturais. Sendo actividades plenamente humanas, os rumos que tomam reflectem opções condicionadas pelos valores pessoais, sociais e culturais de cada época. E o mesmo se diga dos resultados que alcançam: enquanto fruto de abordagens especificamente humanas do mundo envolvente, têm sempre uma dimensão ética, intimamente ligada às decisões de quem projecta a experimentação e orienta a produção para objectivos particulares.
3. A tecnologia do futuro: máquinas que aprendem sozinhas
A capacidade de alguns dispositivos produzirem textos sintática e semanticamente coerentes, por exemplo, não é garantia de fiabilidade. Diz-se que podem gerar afirmações que à primeira vista parecem plausíveis, mas na realidade são infundadas ou preconceituosas. Isto coloca um sério problema quando a inteligência artificial é utilizada em campanhas de desinformação que espalham notícias falsas e levam a uma desconfiança crescente relativamente aos meios de comunicação. A confidencialidade, a posse dos dados e a propriedade intelectual são outros âmbitos em que as tecnologias em questão comportam graves riscos, aos quais se vêm juntar outras consequências negativas ligadas a um uso indevido, como a discriminação, a interferência nos processos eleitorais, a formação duma sociedade que vigia e controla as pessoas, a exclusão digital e a exacerbação dum individualismo cada vez mais desligado da colectividade.
4. O sentido do limite, no paradigma tecnocrático
As máquinas inteligentes podem desempenhar as tarefas que lhes são atribuídas com uma eficiência cada vez maior, mas a finalidade e o significado das suas operações continuarão a ser determinados ou capacitados por seres humanos com o seu próprio universo de valores. (…) Isto deve fazer-nos reflectir sobre um aspecto transcurado frequentemente na actual mentalidade tecnocrática e eficientista, mas decisivo para o desenvolvimento pessoal e social: o “sentido do limite”. Com efeito o ser humano, mortal por definição, pensando em ultrapassar todo o limite mediante a técnica, corre o risco, na obsessão de querer controlar tudo, de perder o controle sobre si mesmo; na busca duma liberdade absoluta, de cair na espiral duma ditadura tecnológica.
5. Temas quentes para a ética
O respeito fundamental pela dignidade humana requer a rejeição de que a unicidade da pessoa seja identificada com um conjunto de dados. Não se deve permitir que os algoritmos determinem o modo como entendemos os direitos humanos, ponham de lado os valores essenciais da compaixão, da misericórdia e do perdão, ou eliminem a possibilidade de um indivíduo mudar e deixar para trás o passado.
Não podemos deixar de considerar o impacto das novas tecnologias no âmbito laboral. A Comunidade Internacional deveria considerar como alta prioridade o respeito pela dignidade dos trabalhadores e a importância do emprego para o bem-estar económico das pessoas, das famílias e das sociedades, a estabilidade dos empregos e a equidade dos salários.
6. Transformaremos as espadas em relhas de arado?
Contemplando o mundo que nos rodeia, não se pode ignorar as graves questões éticas relacionadas com o sector dos armamentos. A possibilidade de efectuar operações militares através de sistemas de controle remoto levou a uma percepção menor da devastação por eles causada e da responsabilidade da sua utilização, contribuindo para uma abordagem ainda mais fria e destacada da imensa tragédia da guerra. A pesquisa sobre as tecnologias emergentes no sector dos chamados “sistemas de armas letais autónomas”, incluindo a utilização bélica da inteligência artificial, é um grave motivo de preocupação ética.
7. Desafios para a educação e 8. Desafios para o desenvolvimento do direito internacional
É necessário que os utentes das várias idades, mas principalmente os jovens, desenvolvam uma capacidade de discernimento no uso de dados e conteúdos recolhidos na web ou produzidos por sistemas de inteligência artificial. As escolas, as universidades e as sociedades científicas são chamadas a ajudar os estudantes e profissionais a assumir os aspectos sociais e éticos do progresso e da utilização da tecnologia. (…) A este respeito, exorto a Comunidade das Nações a trabalhar unida para adoptar um tratado internacional vinculativo, que regule o desenvolvimento e o uso da inteligência artificial nas suas variadas formas. Naturalmente o objectivo da regulamentação não deveria ser apenas a prevenção de más aplicações, mas também o incentivo às boas aplicações, estimulando abordagens novas e criativas e facilitando iniciativas pessoais e colectivas.
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No início do novo ano, a minha oração é que o rápido desenvolvimento de formas de inteligência artificial não aumente as já demasiadas desigualdades e injustiças presentes no mundo, mas contribua para pôr fim às guerras e conflitos e para aliviar muitas formas de sofrimento que afligem a família humana. Possam os fiéis cristãos, os crentes das várias religiões e os homens e mulheres de boa vontade colaborar harmoniosamente para aproveitar as oportunidades e enfrentar os desafios colocados pela revolução digital, e entregar às gerações futuras um mundo mais solidário, justo e pacífico.
(*) Excertos
Vaticano, 8 de Dezembro de 2023
Francisco