Memórias e Fortalezas no Leste de África – Parte 15

Mombaça, Jesus e a Raposeira

As únicas figuras que me lembram de que realmente estou em África são os masai sentados na relva do principal jardim público, esquálidos como sempre, de sandálias nos pés e arco e setas e tiracolo, ainda que nas mãos tragam uma mala de executivo. As mulheres que os acompanham têm o cabelo muito curto ou mesmo rapado.

Ao chegar perto do Fort Jesus – o motivo que me traz aqui – deparo com mais um edifício público simbolizado por dois leões com uma lança cada, segurando um escudo onde está desenhado um galo que empunha um machado e por baixo desse escudo a palavra Harmabe. Uma imagem, no mínimo, curiosa.

Curiosos são também os canhões alemães da primeira Grande Guerra (que teve nestas costas a sua única extensão geográfica que porventura justificaria o estatuto de guerra mundial, que se passou a aplicar ao conflito de 1914-18 só após a eclosão do conflito seguinte, esse sim com uma escala planetária) e dois canhões portugueses, esses bem mais antigos, colocados à entrada da rampa de acesso à porta principal no topo da qual estão gravados, em baixo-relevo, vários dizeres encimados pelo símbolo da congregação jesuíta.

Mas antes de esmiuçar o interior prefiro ficar com uma ideia de como é a estrutura vista de fora, como sempre faço, até porque há que aproveitar o magnífico céu azul para fotografar. Estou tão entretido na importante tarefa que mal ouço a interpelação feita por um dos dois homens sentados na pequena esplanada de um quiosque que vende recordações e quadros de leões e girafas na savana pintados a granel, e que já há algum tempo me olham com curiosidade. Ao aproximar-me da sua mesa, ouço o mais velho dizer:

«– Chamo-me Fernandes e este é o meu amigo Joseph Souza». Esta apresentação, assim de rompante, colhe-me de surpresa. O homem não tem a mínima ideia de onde venho, mas sabe que está em frente a um forte construído pelos portugueses em 1593, décadas depois de um certo Nuno da Cunha ter mandado destruir a magnífica cidade que fora visitada e gabada, ainda no século XV, por Pêro da Covilhã. A conquista do entreposto swahili pelos portugueses em 1528, que tornou súbdito da Coroa de Portugal o sultão local, foi das mais difíceis em todo o Oriente.

 

LUSO-DESCENDENTES ASSUMIDOS

Confirmados os nossos supostos laços genéticos e – porque não – culturais, o Fernandes e o Sousa oferecem-se para me dar todo o apoio que necessite, e insistem para que, após Mombaça, visite as ilhas de Lamu, a norte de Melinde, outro importante local ligado à nossa história. «– É um paraíso, e tem um forte também. Se lá for dificilmente terá vontade de deixar o local», assegura o Sousa.

Recorde-se que Melinde foi o primeiro local onde os portugueses se fixaram, e foi a partir dali que se transferiram para Mombaça. A juntar à tradicional hostilidade dos mercadores árabes, em 1586 os turcos decidem também atacar as possessões portuguesas na região, conflito que duraria vários anos mas que terminaria com a nossa vitória. Para precaver futuros ataques, o conde da Vidigueira, a caminho da Índia, aproveita o facto de ali estar a invernar para lançar os fundamentos daquilo que viria a ser a primeira fortificação levantada de raiz na costa oriental de África, que cedo se transformaria na base da expansão dos portugueses para outros pontos da costa.

Desenhada pelo arquitecto italiano Giovanni Battista Cairati, a fortaleza de Jesus de Mombaça foi inaugurada a 11 de Abril de 1593, tendo permanecido praticamente intacta até aos nossos dias. Mombaça substituía assim Melinde, que durante um século fora o principal ponto de apoio aos navios das armadas que demandavam a Índia. O feito é recordado, na pedra, por cima da antiga porta principal de entrada: “Quando Filipe de Áustria reinava como Filipe I de Portugal esta fortaleza foi fundada sob as suas ordens com o nome de Jesus de Mombaça a 11 de Abril de 1593. Neste ano Matias de Albuquerque era vice-rei da Índia e o capitão-mor Mateus Mendes de Vasconcelos chegou com a sua armada a este porto com o arquitecto chefe da Índia João Batista Cairado”.

A fortaleza, que ocupa uma área total de dois hectares, consiste numa zona central rodeada por quatro bastiões em cada um dos cantos e está assente directamente sobre o coral, atingindo algumas das fundações os doze metros de profundidade. Uma das suas mais distintas características é o facto de os dois bastões virados ao mar, dedicados a São Mateus e a São Matias, estarem ligeiramente enviesados, o que permitia obter o ângulo de tiro ideal sobre toda a embarcação que pretendesse entrar no porto.

 

TERRA DE CONFLITOS

Mombaça foi terra de traição e conflitos, desde os tempos em que Dom Jerónimo Chingulia, ou melhor, Muhamad Yusif, educado e cristianizado em Goa, sultão de Mombaça em 1631, aproveitando-se da confiança nele depositada, ordenaria o massacre de toda a população portuguesa – quarenta e cinco homens, trinta e cinco mulheres e setenta crianças – no tempo em que era seu capitão Pedro Leitão de Gamboa. Como retaliação, foi enviada uma expedição da Índia para retomar o poder, mas sem sucesso. Chingulia, por vontade própria, despiu o disfarce de sultão e vestiu o de pirata, sendo a cidade reocupada pelos portugueses que se encontravam estacionados em Zanzibar, em 1632, sob o comando de Pedro Rodrigues Botelho. Por essa altura efectuaram-se trabalhos de remodelação na fortaleza, fazendo-se subir a altura dos vários bastiões e acrescentando uma plataforma para os canhões, virada para o mar. Por cima da nova porta, aberta a sul, foi gravado o seguinte: “Em 1635 Francisco de Seixas Cabreira com a idade de 27 anos foi feito por quatro anos capitão desta fortaleza, que a reconstruiu”. Mais adiante, na mesma pedra nomeiam-se alguns dos feitos deste oficial que fez “os reis de Otondo, Mandra, Luziwa e Jaca tributários de sua majestade” e infligiu em pessoa “punição a Pate e Sio” e “repreendeu Pemba”, e que por estes serviços seria nomeado “cavaleiro da Casa Real”.

O amarelo-torrado da fachada do Fort Jesus contrasta com o azul intenso do céu. Situada num ponto estratégico, junto a um porto de águas profundas, domina a paisagem do alto de uma escarpa ondulada repleta de magnólias que lhe emprestam o seu perfume. Após um cerco de três anos, em 1698, este reduto foi conquistado pelos árabes de Omã, ao mesmo tempo que passavam também para as mãos inimigas as feitorias de Zanzibar e de Pate. Por cá, como em muitas partes de África e do Brasil, a intervenção das ordens religiosas, que a determinada altura se empenhavam mais no comércio do que na tentativa de redenção das almas, esteve frequentemente em conflito directo com os interesses da Coroa. Havia quem os acusasse de vender “armas e munições aos cafres macuas, inimigos do Estado”.

O cerco à fortaleza teve início em Março de 1696 e só terminou a 13 de Dezembro de 1698. Durante dois anos, os seus residentes – cinquenta soldados portugueses e respectivas famílias, apoiados por mil e quinhentos locais provenientes de reinos que estavam aliados aos portugueses, designadamente Faza e Melinde – sobreviveram graças às provisões entretanto arrecadadas e ao poço que existe ainda no centro da praça-forte. Reforços seriam enviados de Goa, em 1696, mas as epidemias quase os dizimaram. Em 1697, um novo navio com ajuda vindo da Índia acabaria por naufragar e os sobreviventes passaram a constituir a nova guarnição, que um ano depois estava reduzida apenas ao capitão, oito soldados e pouco mais. A 12 de Dezembro desse ano os árabes lograram escalar a muralha do bastião de São Mateus e mataram o capitão, facto que originou a rendição da guarnição. Uma vez instalados no forte, os omanitas atacariam e ocupariam a cidade portuguesa de Gavana, pois era assim que se chamava então a velha Mombaça. Restam alguns edifícios dessa época e o local onde os mapas antigos assinalavam uma igreja é hoje um parque de estacionamento improvisado.

Na rua principal, a Mbarak Hinawy, outrora Rua Vasco da Gama, algumas casas centenárias dão uma ideia do esplendor de outrora, com as suas varandas, portas e janelas de madeira trabalhada. Era na rua paralela a esta, a actual Ndia Kuu, que habitavam os portugueses. Chamavam a este local “a Raposeira”. Algumas moradias comprovadamente pertencentes a goeses, como aquela onde está sedeada a empresa Edward St. Rose e Co, cujos sócios eram filhos de E. N. H. de Sousa e de Albino Daniel Dias, atestam bem essa época. Fachadas, portas e sobretudo as varandas de madeira rendilhada, são os pedaços do património sobrevivente para os quais nos chamam a atenção uma série de tabuletas afixadas em diversos locais.

Joaquim Magalhães de Castro

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