Memórias e Fortalezas no Leste de África – Parte 12

Do continente para a ilha de Quiloa

Mtwara vale sobretudo pelo seu mercado nocturno, onde à luz de lamparinas janto um peixe de caril com arroz a saber a coco, regado com um açucarado chá de gengibre. Um pequeno repasto caseiro por mil e cem swoels, ou seja, um dólar apenas. Para chamar a atenção dos fregueses, as vendedeiras fazem um estranho ruído com os lábios, como se estivessem a chamar as galinhas.

Envio alguns e-mails no único cibercafé aberto a essa hora e quase não consigo encontrar o caminho de regresso à pensão, pois entretanto a energia eléctrica falha pela terceira vez essa noite. «Pronto. Lá se vai o Porto-Manchester», digo eu em voz alta enquanto me concentro na caminhada para não enfiar os pés nalgum buraco traiçoeiro.

Às cinco da manhã do terceiro dia de jornada, eis-me a caminho de Lindi numa camioneta da Naitu Express que percorre uma paisagem semelhante a um sobreiral alentejano, alegremente testando o asfalto financiado pelo general Kadafi, que nisto de construção de estradas em África anda em aberta concorrência com os chineses.

Na Tanzânia há muito mais movimento, muito mais iniciativa privada do que em Moçambique, onde tudo está ainda em estado natural e o ruído é muito menor. Este espírito empreendedor reflecte-se na abundância de pequenos comércios de beira de estrada e, sobretudo, de pensões económicas que surgem nos locais mais improváveis e com os nomes mais originais, como é o caso da “guest-house” Last Illusion, situada na margem do rio que agora atravessamos, perto do que parece ser a ruína de uma ancestral fortificação. Sentados à berma da estrada abundam os vendedores de cana-de-açúcar e nos campos cultivados avisto, pela primeira vez, algumas cabeças de gado bovino. No tecto das casas o zinco substitui o colmo, ainda muito utilizado em Moçambique e que é – há que admiti-lo – mais digno e protege melhor, com a vantagem de não enferrujar. As casas mais “modernas” estão pintadas com o azul violeta da Tigo, outra das operadoras de telemóveis cujas gigantescas antenas dominam a paisagem e são, definitivamente, marca de referência deste país.

 

VENDEDORES AMBULANTES

Na cabeça das pessoas vêem-se as características boinas dos muçulmanos anunciadoras da omnipresença do Islão à medida que avanço no continente africano, embora não falte, de quando em vez, a congregação de inspiração evangélica, como é o caso da The Bonds of Fellowship.

O panorama no que se refere a turistas estrangeiros é que continua o mesmo: em três dias de viagem consecutivos não avistei ainda um único branco.

A paragem em Lindi fica marcada pelos muitos vendedores ambulantes de refrigerantes, chamuças e castanhas de caju, que se atropelam para poder servir os passageiros através dos vidros da camioneta. Os produtos são apresentados em cestos verdes, roxos e vermelhos. A água mineral que me vejo obrigado a comprar, à semelhança do que fazem todos os passageiros, é um excelente produto que dinheiro nenhum pode comprar e é, como asseguram no rótulo os seus fabricantes, “garantidamente da nascente de Ndanda”.

De Lindi a Dar (forma abreviada de Dar es Salam, capital do País) são ainda mais quatrocentos e cinquenta quilómetros, sempre com os agora frequentes controlos policiais. A farda branca dos agentes da autoridade especados no asfalto com blocos de notas na mão e no rosto um ar sério que nada tem a ver com eles, mas também os uniformes azuis e brancos das crianças em idade escolar, são claros resquícios de um passado colonial britânico, que se perpetua hoje, pode-se dizer, na publicidade aos clubes de futebol da Premier League estampada na carroçaria das carrinhas em segunda mão com que cruzamos.

Na paragem seguinte, mulheres vendem-nos roscas fritas (como as nossas farturas) que acompanhamos com chá ou café. As marcas de cerveja tanzanianas mais comuns chamam-se Safari e Kilimanjaro, como não podia deixar de ser, já que estes são dois incontestáveis símbolos do País. Mas eu não estou aqui para subir à mais alta e mais famosa montanha africana, e muito menos para ver animais selvagens, sentado num jipe de calções e jaqueta de caqui e binóculos apontados para a savana, apesar do termo safari querer dizer viagem em swahili.

 

AO LARGO DA ILHA

Ao acercarmo-nos de Namgurukulu, exactamente ao quilómetro 424, deparamos ao longe com uma lindíssima baía de águas azuis e um areal muito branco. É aqui que devo sair. Mal percorro uns metros no asfalto surge-me pela frente um homem, conduzindo um velho Mercedes, que se oferece para me levar a Kilwa Masoko, e até me propõe um preço aceitável, o que me deixa surpreendido. Trinta minutos depois estou num albergue situado à entrada da povoação, sugestão do taxista. Protesto de imediato, pois acredito que há outra e melhor alternativa, mas ele insiste: «– Esta é a melhor pensão. Aqui está mesmo no centro. Não se esqueça que Kilwa Masoko é pequeno».

Como não pareço muito convencido, o homem, muito pacientemente, pede-me que entre de novo no carro e leva-me a uma outra “guest-house”, a um quilómetro dali, se tanto. A alternativa custa o mesmo mas é bastante pior. «– Kilwa, é isto», insiste o taxista em jeito de conclusão, apontando o dedo em redor, para a estrada que havíamos percorrido e para umas quantas casas aleatoriamente espalhadas pela paisagem, não sei se protegidas, se ocultas pelo denso arvoredo. Convencido, regresso à primeira opção que até nem é assim tão má, pois tem vista directa para um mangal onde de momento passa uma manada de vacas. Mais ao fundo está a ilha de Songo Mnara, que desta feita não entra nos meus planos de visita.

Kilwa Masoko é a antecâmara continental da ilha da Quiloa, que apesar do título Património da Humanidade que ostenta não é propriamente considerada uma atracção turística. A verdade é que não passa de uma pequena povoação dotada de um porto e de um banco onde vou trocar dinheiro mas acabo por me vir embora sem a missão cumprida, pois se fosse a pactuar com a aparente propositada lentidão dos funcionários perderia a oportunidade de visitar a ilha, o único motivo que aqui me traz. Para o fazer sou obrigado a requisitar uma autorização oficial num dos raros edifícios da Administração Pública. À entrada do Kilwa Masoko District Office –Tanzania Revenue Authority, um mapa da UNESCO elucida o visitante menos informado acerca da importância patrimonial das ilhas de Kilwa e Songo Mnara “integrados na família do Património da Humanidade a 30 de Outubro de 1981, por deliberação da quinta sessão da comité da UNESCO que reuniu em Sidney, Austrália”.

 

BARCO À VELA

Abrigos de colmo com dezenas e dezenas de sapatos e sapatilhas pendurados do tecto pelos respectivos atacadores e algumas vendas que preparam refrescos e sandes na hora, são os únicos sinais da actividade comercial e, embora sejam muitos os anúncios aos albergues locais como o Kilwa Ruin Lodge ou o Beach Resort, não se avista um único turista, embora exista um aeródromo nas redondezas.

Parto para Kilwa Kisani, “a velha Quiloa”, na companhia de um grupo de tanzanianos de origem persa que não gostaram nada que os tivesse confundido com árabes. Como os compreendo… Tão pouco gosto que me confundam com um espanhol ou italiano. No porto, um aviso escrito a vermelho vivo aconselha os visitantes a utilizar apenas os barcos registados para ver as ruínas, para fazer desportos náuticos, mergulho e para observar hipopótamos. Hipopótamos? Mas há hipopótamos por estas bandas?

Confrontado com a minha surpresa, por ver ali um pequeno cargueiro entre tantas embarcações à vela, o mais novo dos persas diz: «– É um dos nossos barcos. Está aqui a carregar matéria-prima que seguirá depois para Mombaça». Mas não me diz de que teor é a matéria-prima de que fala. Como é óbvio, ele e os seus companheiros de excursão, não vieram a Quiloa apenas pelo prazer de revistar um local histórico, que isso é vício de europeu. Digamos que eles juntaram o útil ao agradável, e hoje mesmo, ao fim da tarde, estarão de partida para Dar es Salam.

A emocionante travessia é feita num zambuco, aqui conhecido como dhow, uma embarcação de apenas quatro metros de comprimento. Desfraldada a vela, num instante pomo-nos ao largo. Na Ilha de Moçambique limitei-me a avistar ao longe estas belas embarcações, inspiradores da nossa caravela; agora estou dentro de uma delas, adornando a bombordo, o que obriga a movimentação de passageiros para equilibrar a coisa. É como navegar numa falua do Tejo, só que neste caso o cavername da embarcação é bem menor, o que permite a entrada de golfadas de água que transformam a viagem numa espécie de desporto radical com a utilização de recursos locais em vez dos artigos especializados de marca, sempre sofisticados e caros.

Joaquim Magalhães de Castro

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