Memórias e Fortalezas no Leste de África – Parte 10

Terras de macuas e macondes

Generosas mangueiras enraizadas em terreiros alaranjados fornecem a sua sombra a aldeias de cubatas cobertas com o capim que cresce nas bermas da trilha percorrida por centenas de mulheres, homens e crianças com carregos na cabeça. Inúmeros ciclistas transportam sacos com carvão vegetal, o bem de consumo mais comercializado nestas paragens. Cena habitual em África: gente, dir-se-ia, num êxodo permanente, quando, afinal, macuas e macondes, etnias predominantes, se limitam a locomover, de aldeia em aldeia. Num contraste absoluto com este universo rural, surgem com frequência sinais rodoviários mais apropriados a auto-estradas europeias e placas indicando paragens de transportes públicos, embora isso tenha deixado de ser uma realidade há já várias décadas.

O entusiasmo do Boaventura, natural do distrito de Meluco, «um santuário de fauna e flora que vem referenciado no mapa», como diz ele, é contagiante. Ao longo da viagem fala-me de mil e uma coisas e alerta-me para o que se passa à nossa volta, como, por exemplo, a existência de uma escola agrária subsidiada com fundos da União Europeia e o interesse histórico de locais como Bemacha e de Namapa, «no distrito de Nampula e de Cabo Delgado», associados a Mombaça e à passagem dos portugueses de antanho, nomes que certamente não me esquecerei.

Em Macomia deixamos o asfalto e paramos uns breves minutos numa encruzilhada onde há uma rodoviária com veículos estacionados ao lado das placas de madeira que indicam o seu destino habitual. Chamam-lhes estações. Estação Mucojo. Estação Olumboa. Estação Pangano. No centro desse enorme espaço aberto, um pilar com uma estrela vermelha no topo é resquício de ventos revolucionários, hoje bastante esfriados.

Daqui em diante espera-nos um estradão de terra batida. Escapa-me agora o nome da povoação logo a seguir a Macomia, mas recordo bem a interessante designação “A vida começa assim” de uma barraca de comes e bebes, e o de uma outra que vende bebidas alcoólicas, “Aly Baba. Estamos grossos, estamos juntos”, frase que na minha opinião se adequa perfeitamente à sua vocação. Totalmente deslocada parece-me a publicidade aos telemóveis “Mcel diz olá”; quanto ao Bar Chung, esse é um claro sinal da presença de chineses também nestas paragens, envolvidos no negócio das madeiras.

«– Aqui eles cortam sobretudo pau-preto», esclarece Boaventura, respondendo à saudação de um aldeão que passa de bicicleta.

Se a maioria das pessoas com que cruzamos reage com normalidade à presença de um branco acomodado com as malas e os sacos nas traseiras da carrinha, há também quem manifeste espanto e até há quem se assuste a valer, como a rapariga à entrada de Quelimene Pequeno que se atira para o mato quando lhe aponto a máquina fotográfica. De repente, lembro-me que sou ainda do tempo em que nas aldeias mais recônditas do nosso país as pessoas mais idosas olhavam os aviões que cruzavam os céus encarando-os como prenúncio do fim do mundo. Um tempo que não é assim tão antigo.

Ao Quelimene Pequeno segue-se o Maputo Pequeno. Os nomes das grandes cidades do País têm aqui a sua versão miniatura. Passamos também por Mu Chai, onde foi disparado o primeiro tiro contra as tropas portuguesas, no que se pode considerar com o grito de Ipiranga da guerra colonial em Moçambique.

«– A gente não esquece», comenta Boaventura, sem acrescentar qualquer outra palavra. Prefiro também não dizer nada, até porque não sei muito bem o que comentar a respeito de assunto tão melindroso.

 

MACHAMBA DE QUIMANES

Ao chegarmos a Nacate, a aldeia natal do amigo Boaventura, este não se esquece de mencionar a machamba do seu irmão mais novo que se estende da estrada para o interior do mato onde muitas outras machambas são sachadas por macondes, como o Boaventura, e quimanes, seus vizinhos e compatriotas. De Outubro a Dezembro cultiva-se, para além da mandioca, também o arroz, mais do que uma vez por ano.

Depois de o Boaventura nos deixar a viagem torna-se mais silenciosa e os motivos de interesse passam a ser menos, até porque entretanto o entardecer transforma-se rapidamente em noite, como é comum nos trópicos. São de realçar uns inesquecíveis, algo aterradores, cem quilómetros em que a carrinha, com a mecânica a precisar de urgente revisão, seguiu praticamente sem travões. Nas descidas, felizmente pouco acentuadas, valeu-nos uma estóica primeira que se fartou de gemer. Junto a uma ponte por pouco não nos despistávamos, evitando por centímetros um barranco bastante fundo. Assustado, o motorista achou por bem não forçar mais a barra, até porque a noite estava escura como o breu e de nada valia chegar a Moçimba àquelas horas. Após ter conferenciado ao telefone com a sua chefe, que nessa altura estava a sair de Pemba numa carrinha similar, o responsável pelo palanque do presidente autorizou o condutor a encostar a viatura à berma da estrada, e ali dormimos à bela estrela, acomodados em cima dos ladrilhos de cerâmica.

Chegamos ao mercado de Moçimba da Praia de manhã bem cedo, precisamente na altura em que pessoas começam a abrir as suas barracas e tendas. Este é o destino do rapaz e da rapariga (só agora me dou conta que são irmãos), que não proferiram uma única palavra durante toda a viagem, mas quando chega a altura de pagar o preço previamente combinado dizem que não têm dinheiro. Percebo então porque razão o condutor hesitara em trazê-los consigo. Pelos vistos, a pessoa que os devia receber em Moçimba, e que era o futuro marido da rapariga, esquivou-se quando soube da responsabilidade que lhe queriam acatar. Após alguns momentos de impasse, nada agradáveis, diga-se de passagem, o condutor faz-se pagar retirando dos sacos que os dois transportam maçarocas de milho e mãos cheias de arroz. E de nada vale a minha intervenção, oferecendo-me para a pagar a passagem dos pobres camponeses, evitando assim humilhações desnecessárias, até porque o numerário em causa não é significativo. O condutor não só não aceita a minha oferta como reafirma, em jeito de mestre-escola, que eles devem assumir a responsabilidade dos actos que cometem.

 

CHINESES E OMANITAS

Entre as raras pessoas que avisto nas ruas de Moçimba da Praia nessas primeiras horas da manhã consta uma mulher chinesa, certamente familiar dos donos da serração que encontramos uma centena de metros à frente. Estão depositados nas instalações dessa pequena unidade fabril diferentes tipos de madeiras, ainda na forma de toros: umbilas, chanfudas, pau-rosa, pau-preto. Não me admirava nada que o Quelimanjaro, o único albergue visível, fosse também propriedade dos chineses.

Entramos em Palma – meia dúzia de barracas alinhadas ao longo da rua principal – duas horas depois. Chama-me desde logo a atenção um posto de imigração que parece desactivado, pois o polícia de plantão olha-me, por simples curiosidade, e deixa-se ficar sentado onde está.

Junto a uma rotunda assinalada por um monumento à independência, a placa Praia de Palma abre a possibilidade da existência de algo mais que a dúzia de comércios já referidos. O mar ainda fica distante, em baixo, num desnível de talvez uns cinquenta metros.

Oito da manhã é já muito tarde para apanhar transporte público, do género até agora utilizado, seja para onde for, e em Palma não há nada que se assemelhe a um hotel. Poderei, se quiser, alugar uma carrinha ou uma motocicleta, mas tanto uma como outra são opções bastante caras. E, mesmo assim, é preciso que alguém esteja disponível para me transportar até à fronteira tanzaniana.

Um mero acaso conduz-me ao encontro de Mussa Abdulai, um desses moçambicanos de origem omanita que preferia que os portugueses nunca tivessem partido. Está junto a um edifício em construção e prepara-se para almoçar amêijoas com mandioca preparadas num grande tacho que ainda aquece ao lume de uma enorme fogueira. Convida-me para almoçar e ao saber das minhas intenções oferece-se, com a maior naturalidade deste mundo, para me levar até a fronteira.

«– Se calhar acompanho-o até Mtwara, a primeira cidade tanzaniana. Costumo lá ir com alguma frequência», diz ele.

Confesso que sou apanhado de surpresa. Uma agradável surpresa.

Joaquim Magalhães de Castro

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