MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 47

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 47

Padres franceses e bávaros e as cartas a D. Maria I

De acordo com o orientalista Anquetil-Duperron, Pons e Boudier teriam sido fundamentais para o melhoramento do observatório de Jaipur, embora assim não o considere o investigador Eric G. Forbes, para quem o conhecimento científico dos prelados “nada acrescentou ao conhecimento já existente” e ali aplicado. Seja como for, a eles se deve a marcação “das latitudes e longitudes de cerca de 60 cidades indianas”. A ideia de estabelecer nova missão cristã em Jaipur, para assim compensar o bloqueio religioso dos domínios do Grão-Mogol, foi certamente para eles motivaçãotão forte quanto o desejo de ajudar Jai Singh II nas suas apuradas medições. Sendo certo que aquando da sua chegada a Jaipur o observatório estava já devidamente equipado, não podemos ignorar o papel destes prelados no que concerne a eficiência daquele organismo. Prova disso, as analises astronómicas efectuadas por Boudier (entre 1731 a 1735) serem ainda hoje válidas. Contudo, problemas de saúde forçaram os franceses a retornar à terra natal depois de uma breve estada, durante a qual passaram a maior parte do tempo esgrimindo com os brâmanes locais o grau de dívida da astronomia indiana para com a antiga cultura grega.

Em 1736 – como lembra o investigador S. Noti –, com a ajuda do vice-rei de Goa, Dom Pedro Mascarenhas, Conde de Sandomil, dois jesuítas bávaros, Anthony Gabelsberger e Andrew Strobel, abalam para Jaipur. “Vieram da Alemanha financiados na totalidade pelo rajá”, lembra Noti. Após a morte de Gabelsberger, em Jaynagar, a 9 de Março de 1741, Strobel manter-se-á como único membro do grupo de astrónomos europeus em Jaipur. Quatro das suas cartas foram escritas naquela cidade entre 1742 e Outubro de 1744, sendo a última dirigida à Rainha de Portugal, Dona Maria I. Após a morte de Jai Singh II (1743), o observatório de Jaipur foi destruído, perderam-se todos os manuscritos e muitos dos instrumentos foram vendidos como ferro-velho. Nesse mesmo fatídico ano, Andrew Strobel partia para Agra e a 27 de Outubro de 1746 enviava nova missiva à rainha portuguesa informando que mudar-se-ia definitivamente para Deli. Convidara-o o Grão-Mogol, presumivelmente para assumir o comando do observatório daquela cidade. Sabe-se que em Deli viveu com muitas privações, nãoraras vezes envolvendo-se em acesos conflitos com os cacizes locais. Em 1749, seria destacado para Narwar e dele não mais ouviremos falar até à hora da sua morte, ocorrida, segundo o padre Félix a 30 de Março de 1752, embora o padre Huonder prolongue a data para meados de 1770, tese suportada pelo conhecido compilador de memoriais dos missionários da Companhia de Jesus, Carlos Sommervogel, que nos garante ter saído o nome de Strobel “dos nossos catálogos apenas em 1771”. Porém, se tivermos em conta um trecho do “Narratio expeditionum hellicarimi quas Afganes sen Pattanes in Indiam susceperunt”, da pena do padre Tiefenthaler, podemos concluir que o bávaro faleceu em Agra em 1758.

O “Neue Welt-Bott”, preciosa e rara compilaçãode textos filosóficos e científicos dos missionários, num total de quarenta volumes, deve-se ao labor do padre Joseph Stocklein (1676-1732), natural da cidade austríaca de Graz. Nela constam doze cartas com a assinatura de Andrew Strobel. A respeito do “Neue Welt-Bott”, lembre-se que obras cronológicas com o objectivo de tornar mais claras as acções de Deus no mundo não são coisa assim tão rara. Semelhantes tentativas, como nos diz o investigador Renate Durr, “baseiam-se sobretudo no Antigo Testamento, que era visto como uma narrativa historiográfica e, portanto, contada como um registo da verdade factual”. No entanto, o conhecimento da China (obra dos missionários jesuítas) que foi chegando à Europa “contradiziam essa tradição exegética”. Ou seja: quem quisesse tentar associar as novas descobertas vindas da China à Bíblia via-se obrigado a “abandonar certas verdades a fim de salvar outras”. Visto sob este prisma, a estrutura rígida da verdade bíblica deu origem a hipóteses criativas, como a mencionada cronologia do padre Stocklein, que tem a ousadia de conceber o Extremo Oriente, em vez do Médio Oriente e a Europa, “como o centro geográfico do universalismo cristão e do início da história universal”. Um passo crucial nesse sentido seria a mudança da localização do Paraíso para as vizinhanças imediatas da China, certamente inspirado pelo mítico Shangri-La, identificado, como já nestas páginas deixámos escrito, pelo padre Estêvão Cacela.

Ao confrontar as múltiplas fontes budistas, muçulmanas e cristãs, Joseph Stocklein, no entender de Renate Durr, “transformou a história bíblica da salvação numa história chinesa de salvação”.

Joaquim Magalhães de Castro

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