MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 36

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 36

Jodhabai e a esposa cristã do imperador Akbar

Entre os imperadores mogóis aquele que mais se destaca, pela grandeza de carácter, cultura e eloquência, é, sem dúvida, Akbar. Sendo a tolerância religiosa uma das suas imagens de marca – que o digam os jesuítas! – não admira que tenha desposado mulheres não muçulmanas. E é neste contexto que surge a controversa figura de Jodhabai; para alguns historiadores, esposa de Akbar; para outros, consorte do filho, Jahangir; havendo até quem ache que se trata tão-só de uma personagem fictícia, à semelhança da lendária rainha Rani Padmavati. Na realidade, e de acordo com a crónica oficial “Akbarnama”, o imperador casou-se com uma princesa de Rajpur, embora em nenhum parágrafo desse registo surja o nome “Jodhabai”. Akbar esposou, isso sim, a princesa hindu Hira Kunwari, filha mais velha do raja Bihari Mal, governante de Amer, e aquela após ter dado à luz Jahangir passaria a ser intitulada Mariam-Uz-Zamani. Sobre tão poderosa e influente senhora não faltam referências nos livros. Mas lá iremos.

Presume-se que a teoria “Jodhabai esposa de Jahangir” se deva à confusão do tenente-coronel James Tod, autor do “Annals and Antiquities of Rajasthan”, ao assumir que fosse esposa de Akbar a filha de Udai Singh, rajá de Jodhpur, (Jodhabai significa “senhora de Jodhpur”), quando, na verdade, ela era uma das mulheres de Jahangir.

E aqui chegados, temos pela frente a hipótese “origem portuguesa”, defendida pelo goês Luis de Assis Correia. No seu livro “Portuguese India and Mughal Relations, 1510-1735” o autor admite o carácter fictício do nome Jodhabai, “necessário às convenientes narrativas históricas durante a era do grão-mogol”. Assis Correia associa, assim, Jodhabai a Dona Maria Mascarenhas, capturada, juntamente com a irmã Juliana, no Mar Arábico, quando viajava numa armada portuguesa. Ambas seriam oferecidas pelo sultão Bahadur Shah ao ainda jovem Akbar. Garante Correia que o mogol se apaixonou de imediato por Maria, então com dezassete anos, e a alojou, a ela e à irmã, no melhor recanto do seu harém. Quanto ao silêncio em torno deste episódio nos documentos coevos, o autor goês argumenta com a presumível relutância dos portugueses, católicos até à medula, em aceitar que um deles habitasse o harém da corte. Do lado oposto, os mogóis, ferrenhos muçulmanos, tão pouco compreendiam que uma firanghi fosse capaz de alcançar tão elevado e prestigiado patamar. Por esse motivo, criaram os escribas mogóis (e também os britânicos) daquela época “o mito Jodhabai”. Lembra Assis Correia, e bem, a ausência de qualquer menção a essa figura na coeva literatura da época, incluindo aquela que especificamente dizia respeito a Akbar e a Jahangir.

Luis de Assis Correia vai mais longe: sugere a possibilidade de ser Maria Mascarenhas a mãe de Jahangir, ou seja, a nossa já conhecida Mariam-Uz-Zamani. E questiona: “Porque motivo os cronistas mogóis Abdul Qadir Badayuni e Abul Fazal jamais mencionam o nome da mãe de Jahangir?” Se Jahangir fosse na realidade neto de um rei hindu, certamente o facto seria amplamente divulgado, tendo em conta que os mongóis “estavam ansiosos para forjar uma aliança estratégica com os rajputs”. Correia escora o seu raciocínio na citação de Shireen Moosni, reputado professor e historiador muçulmano: “Não há menção a Jodhabai em ‘Akbarnama’, nem em qualquer outro documento mogol desse período. Akbar casou-se com uma princesa do clã Kachhava, filha de Bha Mal, mas o nome dela não era Jodhabai”. Assis Correia considera que a postura positiva, e até patrocínio, de Jahangir em relação ao Cristianismo, em geral, e aos missionários jesuítas, em particular, é a maior evidência da sua ascendência portuguesa. Consta que desde criança Jahangir usava uma corrente de ouro com uma cruz em volta do pescoço e no interior do seu palácio havia imagens de Cristo e da Virgem.

Para baralhar mais as coisas, há ainda a ter em conta a teoria do príncipe Miguel da Grécia, conhecido autor de livros históricos. Dá de barato, o helénico, a tese do casamento de Akbar com a princesa rajput, encarando-o como sinal de tolerância e, acima de tudo, “da reconciliação que ele [Akbar] procurava estabelecer entre seus súbditos muçulmanos e hindus”, lembrando que a princesa ao dar um herdeiro ao seu senhor ganhara o direito a viver no maior dos palácios, “vasto e verdadeiramente sumptuoso”. Mas havia um outro edifício, mais modesto, “porém elegante e de proporções lindíssimas”, onde habitava “a esposa cristã do imperador” e cujas paredes se encontravam cobertas com frescos ilustrando vários episódios da história do Cristianismo. Segundo Miguel da Grécia essa mulher chamava-se “Julia Magallanes” e era uma das favoritas do imperador. Também menciona uma irmã dessa portuguesa que Akbar presentearia, acompanhando-a de bens fundiários, a um dos seus assessores mais próximos, “o artilheiro-mor que havia transformado e modernizado as suas forças armadas”. Ora, esse homem, “que se apresentara na corte do imperador para oferecer os seus serviços”, chamava-se Jean Philippe de Bourbon e descendia – de acordo com a pesquisa efectuada por Miguel da Grécia, que ao personagem dedica um dos seus livros – de uma poderosa família francesa.

Caído em desgraça na Europa, na Índia buscara o anonimato. Mas sem sucesso, pois ao casar-se com Juliana Magallanes o gaulês tornar-se-á cunhado de Akbar. Ainda hoje vivem em Bhopal descendentes seus que exibem com orgulho nos passaportes indianos o ilustre apelido Bourbon. Como se pode constatar, esta tese tem muitos pontos comuns com a tese de Assis Correia, embora o Mascarenhas dê lugar ao Magallanes, ou melhor dizendo, ao Magalhães. Seja como for, a existência de uma Juliana na corte de Akbar é comprovada pelos escritos do coronel William Kincaid, em 1887. O inglês refere essa “lady” como “irmã da mulher cristã do imperador” e diz-nos ainda que, devido à sua habilidade e conhecimento da medicina europeia, cuidava da saúde das damas imperiais. Não deixa de ser curiosa esta afirmação, para não dizer, suspeita, pois no nome e nas funções coincide esta Juliana com uma outra, Dias da Costa de apelido (de quem já aqui falámos), que ocupará local proeminente no serralho imperial meio século depois, já no reinado de Aurangzeb.

Como prometido, regressemos agora a Mariam-Uz-Zamani, a enigmática mulher que do seu recanto no serralho imperial controlava um imenso empório comercial. Era dela o maior navio indiano a vogar as águas do Índico e do Mar Vermelho. Conhecido como o “grande navio de peregrinação”, o “Rahimi” seria apreendido em 1613 pelos portugueses, e com ele as centenas de passageiros a bordo e toda a carga. Pelos vistos não tinha o obrigatório “cartaz”, ou seja, a licença de navegação exclusivamente concedida pelos portugueses. E como estes se recusassem a devolver a embarcação, mesmo sabendo que a reverenciada ex-imperatriz era proprietária e patrona, Jahangir ordenaria a ocupação de Damão como medida retaliativa.

Já antes, em 1575, as autoridades do porto de Surat impediram o embarque para Meca de Gulbadan Begum, filha do imperador Babur e tia do poderoso Akbar, então soberano de todo o Norte da Índia. A nobre viu-se obrigado a aguardar um ano, recorrendo a todo o tipo de negociações e subornos, para finalmente concretizar o seu propósito. Estes episódios comprovam que o poder dos imperadores mogóis acabava junto à costa. Nos mares prevalecia ainda – não por muito mais tempo, é verdade – a vontade da Coroa Portuguesa, dona dos Oceanos. Quem não fosse detentor de um “cartaz” estava impedido de sair da Índia por via marítima, fosse ele plebeu ou gentil-homem. E como cada “cartaz” trazia estampadas as imagens de Jesus e Maria, sinal do fervoroso catolicismo luso, imagine-se o mal-estar dos muçulmanos obrigados a comprar esses documentos para fazer o obrigatório “haj”, a tão desejada peregrinação a Meca.

Joaquim Magalhães de Castro

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