MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 34

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 34

A vivência cristã de “Bibi Juleana”

Ao longo dos últimos três séculos muita tinta correu a respeito de Juliana Dias da Costa, nos mais diversos idiomas e, não raras vezes, com factos algo contraditórios. Desde os lacónicos registos da administração mogol às missivas de serviço enviadas às autoridades portuguesas em Goa, passando pelos relatos hagiográficos dos missionários ou às biografias de pretensos descendentes da dita dona – eivadas de um previsível romantismo, é claro – e acabando nos diversos artigos em jornais e revistas indianos da actualidade.

Munidos de toda esta informação podemos agora pormenorizar alguns aspectos da vida dessa admirável mulher que sintetizámos na edição passada da MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH. Fique-se então a saber que Juliana entrou na Corte como serviçal de Nawab Bai, esposa de Aurangzeb e filha de um rei muçulmano de Caxemira. Era essa mulher mãe do terceiro filho do imperador, que herdaria o trono com o título Bahadur Shah I; não sem antes assistirmos a uma dose reforçada de traição e decepção, típicos ingredientes desde o início da fundação da dinastia mogol por Babur, tetraneto do temível Tamerlão, o auto-apelidado “Sabre do Islão”.

Encarregado por diversas ocasiões de cumprir tarefas de Estado, o jovem príncipe nunca se mostrou à altura da confiança que nele depositara o seu pai; não obstante, insistiu este em entregar-lhe importantes missões. Traição cometida pelo príncipe em 1687 levá-lo-ia ao cárcere em Deli, na companhia de todo o seu harém. Ficou a alteza proibida de cortar as unhas e o cabelo durante seis meses e de comer boa comida e beber água fria, estando ainda impedido de contactar fosse quem fosse sem a autorização prévia de Aurangzeb. Sob escrutínio permaneceriam também a sua mãe, Nawab Bai (morta em 1691), e Juliana, a consorte favorita, que com eles compartilhou aqueles anos de infortúnio. Por volta de 1694 o príncipe foi reabilitado e autorizado a refazer o harém, embora continuasse debaixo de olho. Numa biografia encomendada por um dos supostos descendentes de Juliana Dias da Costa, afirma-se que esta, com o risco da própria vida, terá nesse período crítico contrabandeado várias pedras preciosas, e devido a isso lhe prometera o príncipe generosa recompensa quando fosse imperador; sim, porque era só uma questão de tempo…

Pormenor estranhamente escamoteado pelos historiadores estrangeiros, mas ponto assente entre os indianos que se têm debruçado sobre a matéria, a história de amor vivida entre Juliana e o príncipe mogol. Um romance mantido em segredo devido à ortodoxia de Aurangzeb, como sugere Raghuraj Singh Chauhan, antigo director do Museu Nacional de Nova Deli e um dos autores do livro “Juliana Nama” (2017), que analisa a fundo a vida e obra de Juliana Dias da Costa. Singh Chauhan e Madhukar Tewari (o co-autor) obtiveram a necessária informação nos arquivos históricos de Goa, onde trabalharam durante décadas como arquivistas, já que em toda a documentação em Persa (a língua oficial do império) a única referência à favorita de Bahadur Shah surge no livro Tarikh-i-Muhammadi. “Julya (Juliana), uma piranga ( faringe, estrangeiro), médica e favorita do falecido Shah Alam ( Bahadur Shah) e do reinante Muhammad Shah morreu em Agosto de 1734”. A obra relata-nos os sete longos anos de cativeiro e a fenomenal ascensão social de Juliana, que a colocaria entre os mais nobres e ricos da Corte, isto num período histórico extremamente volátil marcado por terríveis e sangrentas guerras pela posse do “Trono do Pavão” – assim era conhecida o cadeirão do poder mogol. Entre as diversas alcunhas de Juliana constam “Dona”, “Fidwi Duago Bahadur Shah”, “Madame de Maintenon”, “Khanum”, “Amazona” e “Oráculo do Imperador” e “Bibi Juleana”.

Morto Aurangzeb, em 1707, segue-se o típico caos fratricida. Bahadur Shah, já com a respeitável idade de 63 anos, derrota e mata o irmão Muhammad Azam Shah na batalha de Jajau, em Junho de 1707. Este significativo episódio é-nos relatado no “Mémoires Sur L’Indoustan: Ou Empire Mogol” da autoria de Jean Baptiste Gentil (1726-1799), um oficial francês que em 1772 casou, em Faizabad, com a luso-indiana Theresa Velho, sobrinha de Juliana Dias da Costa. De acordo com o relato de Gentil, Juliana prenunciara a vitória do Bahadur Shah, pois as “orações de todos os cristãos estavam com ele”. Qual avatar de Joana d’Arc, Juliana não hesitou em montar num elefante e ir com o seu senhor para a batalha ostentando uma bandeira vermelha com uma cruz branca ao centro, doravante a sua imagem de marca. Após a vitória, Bahadur Shah proferiu: “Se Juliana fosse homem, eu a faria ministra!”.

Declarada protectora dos cristãos seria muita a riqueza e os títulos de realeza acumulados, tendo-lhe sido franqueados também os portões do palácio do malagrado Dara Shikoh, irmão de Aurangzeb que este cruelmente mandara assassinar. Garante-nos ainda Gentil que a coroação de Bahadur Shah se efectuou no mesmo dia da festa de São João Baptista, o padroeiro de Juliana, e terá sido ela quem lhe colocou a augusta coroa na cabeça. Juliana sempre soube içar o estandarte da Santa Cruz e só faltou convencer o imperador Bahadur Shah I a baptizar-se, pois os outros rituais ele já os cumpria: ajoelhava-se diante da imagem de Jesus Cristo, em oração; enviava bênçãos às igrejas; correram rumores até de que ele se tornara cristão no leito de morte nas mãos de Juliana… A corroborar o testemunho de Jean Baptiste Gentil, escrito em Francês e para um público francês, temos um relato holandês coevo que confirma tudo o que Gentil relata.

Para o público indiano, este militar teve o cuidado de contratar o seu compatriota Gaston Bruit para redigir uma biografia de Juliana em Persa. No extenso “Ahval-i Bibi Juliana” a luso-indiana surge retratada como uma mulher de grande piedade e valores cristãos, levando uma vida de devoção ao rei e pedindo intercessão divina em seu favor. Bruit detalha a vida quotidiana de Juliana: “Passava quatro horas da manhã em oração e as próximas quatro horas em especialidades culinárias para o rei, incluindo seu khichdi [prato de arroz e lentilhas] favorito”. Envergava sempre as suas vestes reais – libas-i-darbari – e até nos assuntos do Estado a envolvia o seu rei, que a autorizava a sair do Lal Qila (o Forte Vermelho), acompanhado por um séquito de cinco mil homens a pé, e ela no seu paquiderme. No entanto, nota Bruit, apesar de todo este poder, Juliana era um modelo de modéstia, humildade e piedade.

Ora, toda esta proximidade aliada à confiança nela depositada são claros sinais que entre Juliana e Bahadur Shah algo havia muito mais íntimo do que uma mera relação entre senhor e cortesã. Juliana tinha ao seu dispor um imenso poder que felizmente soube aproveitar. E para fazer o bem. A sua influência prolongar-se-ia nos reinados subsequentes, embora de forma muito menos notória. Numa época em que os famigerados irmãos Sayyad, conselheiros de reis e, sobretudo, seus substitutos, mandando e dispondo, ordenando o assassinato deste ou daquele consoante as suas jogadas políticas, e citando de novo a obra o senhor Gaston Bruit, a mãe de Muhammad Shah, neto de Bahadur Shan, pediu a Juliana que intercedesse por ele junto do seu Deus. Juliana ouviu-a, mudou o nome de Muhammad Shah para Muhammad Yahya e através das suas preces colocou-a sob o cuidado de São João Baptista.

Muhammad Shah ascenderia ao trono em 1719 (curiosamente com a ajuda dos inefáveis irmãos Sayyad) e, agradecido pelas orações de Juliana, foi praticante da caridade, “sempre em nome de São João Baptista”, além de promotor das artes plásticas, da música e da arquitectura; daí o cognome “Rangila”, ou seja, “o Colorido”. Infelizmente, noutros domínios a sua carreira não foi tão ilustre. O império mogol, já em plena decadência, sucumbe quase definitivamente face à invasão do persa Nadir Shah, em 1739, sendo Deli ocupada e saqueada.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *