MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 29

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 29

Antony Firingee e a sua reencarnação via sétima arte

O nosso Antony Firingee voltaria à tela em 2014, desta feita pela iniciativa de Srijit Mukherji, autor de “Jaatishwar”, filme que apesar de ter arrecadado quatro prémios nacionais nas categorias de melhor director de fotografia, melhor figurino, melhor direcção musical e melhor maquilhagem, foi um insucesso comercial. Vamos lá ao enredo. “Jaatishwar” balança-se confortavelmente entre dois períodos históricos, o início do século XIX e a actualidade, de uma maneira deliberada e não linear, o que só favorece este bom trabalho injustamente menosprezado pelo público. Em paralelo com o perfil biográfico de António, vamos acompanhando a relação entre Rohit Mehta (interpretado por Jisshu Sengupta), um aluno de estudos portugueses, músico nos tempos livres, nascido em Bengala mas gujarati de origem, e Mahamaya Bandyopadhyay (a actriz Swastika Mukherjee), também ela estudante universitária e bengali de gema.

Apesar de ter crescido em Calcutá, Rohit – apaixonadíssimo pela sua colega de turma – não domina o idioma local, e Mahamaya, purista da língua, apenas se mostra disposta a considerar a proposta de namoro de Rohit se este for capaz de compor uma música em Bengali e conseguir cantá-la “com a pronúncia adequada a um bengali”. Mahamaya, mulher ferozmente independente, rechaça tudo o que não seja da sua província. Locutora na popular estação de FM, Radio Mirchi, demonstra bem o seu fanatismo ao divulgar nas ondas hertzianas apenas temas clássicos, para grande consternação do seu chefe (o realizador Srijit Mukherji tem aqui uma participação especial) que a quer encarregar de organizar um concurso de “rock” com bandas indianas e bangladeshis, numa tentativa de, através da música, aproximar os dois povos.

Entretanto, Rohit parte para Portugal, aproveitando um programa de intercâmbio estudantil. Mas não desiste de Mahamaya, lembrando-se sempre do repto que esta lhe lançou. Ao procurar tema para a sua dissertação de final de curso, Rohit depara com uma referência a um tal “Hensman Antony, filho de um comerciante de sal português, que viveu em Bengala no século XIX e se tornou um dos principais cultores de uma forma musical muito popular designada kavigan”. Animado, Rohit pede autorização ao seu orientador para ir à Índia investigar acerca da vida desse personagem. “Há pouca informação na Internet”, explica ele, “além da menção a um filme bengali de ficção”. Trata-se de “Antony Firingee” (aqui dissecado há quinze dias) que Srijit Mukherji utilizará como fio condutor à história de amor novecentista que acompanha e intersecciona o enredo amoroso de “Jaatishwar”. O orientador, um tal professor Salazar, interpretado por um actor com forte sotaque ianque (foi o caucasiano que arranjaram), encoraja Rohit e despede-se dele com esta pérola humorística: “Força. Vai em frente. Recomendar-te-ei ao José Mourinho”.

É claro que nenhuma das cenas deste interregno académico de Rohit – o campus universitário; a sala de aula com o professor Salazar a dar as boas vindas aos estudantes de cultura portuguesa; o convívio entre estudantes com um português a guitarrar e a cantar em Espanhol (!), acompanhado por Rohit; a óbvia fixação de uma estudante chinesa por este ao entregar-lhe uma carta ilegível, pois está escrita em Mandarim – foram filmadas em Portugal. Denuncia isso mesmo a turva água do rio que enquadra a conversa de Rohit com um compatriota seu e que nos conduz ao primeiro “flashback” (logo é aplicado um filtro, entre o sépia e o amarelo, na imagem) e primeiramente refere a saga de António. Um olhar de pássaro sobre o Hugli mostra-nos uma embarcação onde o nosso herói conversa com o pai. “Lar, doce lar”, exclama este. “Considera mesmo este o seu lar?”, pergunta António. E o pai (na ficha técnica definido como Old Man) responde sem hesitações: “Sim, claro que sim. O lar é onde está o coração e o negócio é o meu coração. Alegra-me saber que estejas a aprender o ofício pois assim poderás dar-lhe continuidade”. Replica António que não lhe interessa minimamente o negócio nem as viagens com ele relacionadas. “Quero é fazer música e cantar”, atira. “Sim, compreendo”, diz o pai, “mas certamente saberás que não podes fazer disso um modo de vida”.

Em busca de detalhes acerca do músico e poeta português, Rohit dirige-se a Chandernagar, onde conhece Kushal Hazra, um misterioso funcionário da biblioteca local. Kushal mostra-se disposto a ajudar Rohit na sua pesquisa, mas há um problema: o homem acredita piamente ser a reencarnação de Antony Hensman Firingee! O que acontece com a pesquisa de Rohit e com Kushal Hazra? Será que as vidas de Rohit e Mahamaya se interconectam uma vez mais? Tudo isso e muito mais é o que o resto do filme trata, mas mais não vou contar.

Considero que Srijit Mukherji consegue conduzir a narrativa, com sucessivas viagens no tempo, de uma forma equilibrada e muito inteligente, sendo a música o contínuo motor do projecto. Em determinados momentos deparamos com cenas que nos rementem para os géneros de suspense e do fantástico. Pela negativa, aponto o tema em Espanhol (na língua e sonoridade) que António canta na sua primeira aparição, isto antes de um sadhu lhe estender o xilum para que inale algum do fumo sagrado. Pela positiva, o diálogo em Português (forçado, é certo, pois estamos perante figurantes de língua materna anglo-saxónica) entre António e o pai, que as legendas em Inglês tornam compreensível para muitos dos bengalis, mas não para todos. E já que se fala delas, não se entende o porquê das legendas em apenas duas cenas? Por que não em todo o filme? Vá lá que o frequente uso de frases em Inglês pelos actores (característica das ditas classes educadas do subcontinente e de certos países do Sueste Asiático, como a Indonésia) nos permite ter uma ideia do todo. Prosenjit Chatterjee, estrela maior do cinema bengali, assume o duplo papel de Antony Firingee e o da sua reencarnação, o bibliotecário Kushal Hazra. Caracterização excelente, pois quase nem nos apercebemos que é o mesmo actor. A ter em consideração a postura ecuménica de António, personagem bastante espiritual que transmite serenidade e confiança; no aspecto lembra até Jesus Cristo. Enquanto o António do “Antony Firingee”, de Uttam Kumar, parece negar os seus, o António do “Jaatishwar” (bem mais próximo da figura histórica) abraça ambos os credos, advoga a tolerância e é, por isso, vítima da turba fanática. Numa das cenas o português recebe um grupo de locais à porta da sua humilde casa em cuja parede são bem visíveis a Cruz e o Ohm, símbolo do Hinduísmo. O filme não nos dá grandes indicações sobre a vida de António, aparte o seu universo musical, tão pouco é detalhado o seu romance com Soudamini, talvez deliberadamente. Não esquece, porém, o mais importante; o mais revolucionário de todos os actos de António: o momento em que o vemos, com um grupo de amigos, de espada em riste e em disparada cavalgada, acometendo contra os brâmanes que se preparam para atirar a viúva Soudamini à fogueira. Uma palavra para Kabir Suman, autor da banda sonora. Fabulosas músicas, de época ou contemporâneas. No final, Kushal Hazra traz à tona a dor de um homem que vive sob o constante medo de perder sua identidade para sempre…

Um ano após a estreia de “Jaatishwar” era posto em cena no palco do auditório de Madhusudan Mancha, em Calcutá, uma peça de duas horas do grupo teatral Purba Paschim e intitulada “Antony Soudamini”. A autoria é de Soumitra Mitra e a interpretação a cargo de Anirban Bhattacharjee (António) e Gargi Roy Chowdhury (Soudamini). Também neste caso a música foi componente essencial: um total de dezoito temas, todos compostos por Ujjwal Chattopadhyay. “Era fundamental fazer uma peça acerca de Antony Firingee, pois ele mora na literatura e cultura bengalis”, afirmou Soumitra Mitra ao The Telegraph, jornal diário em língua inglesa. Também ele se queixa da escassez de dados sobre a vida e obra de António, indicando que a pesquisa demorou seis meses.

A fenómenos culturais deste género deveriam estar atentos os funcionários do serviço público de televisão destacados nas feiras da especialidade em busca de conteúdos. Só que isso raramente acontece, como bem sabemos. Obrigação, mais do que muita, tem a RTP de exibir em horário nobre filmes deste género, mas confesso ter pouca esperança… Talvez me engane. Fica aqui o repto. Numa nota final recordo que Srijit Mukherji dedica “Jaatishwar” a Manna Dey (o cantor de quem falamos na crónica anterior) e a um tal Henry, cujo apelido, Derozio, me deixou com a pulga atrás da orelha. “Cheira-me a português”, pensei. E não é que estava certo! Sobre Henry Derozio nos debruçaremos nas próximas edições desta secção.

Joaquim Magalhães de Castro

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