A extraordinária história de amor de Antony Firingee
“Romeu e Julieta”, o mais universal dos amores proibidos, não passa de uma mera ficção, e “Pedro e Inês”, um dos mais cruentos e dramáticos episódios da vida amorosa da baixa Idade Média, só o conhecem alguns portugueses, pelo que seria pedir demasiado a estes e aos restantes que tenham ouvido falar de algum dos inúmeros amores impossíveis aglomerados ao longo dos séculos naquele que era um espaço ultramarino único.
O amor proibido que hoje aqui trago é revolucionário, e bem real, ao contrário das míticas historietas de “Tristão e Isolda” ou de “Lancelote e Guinevere”. Foram protagonistas não dois adolescentes ou meras figuras lendárias, antes gente de osso e carne; gente num considerável patamar espiritual, quais almas gémeas. Paixão destruída – podemos afirmá-lo – por actos de xenofobia, intolerância e ódio. Passo a apresentar o protagonista, nascido em Portugal, em 1786, e década e meia depois expatriado para Bengala na companhia do pai, mercador de sal, numa altura em que cobiçavam a Índia diversas potências europeias.
Ingleses, franceses, holandeses, e até espanhóis e dinamarqueses, disputavam lugares onde outrora tinham sido donos e senhores os portugueses. É sabido como os ingleses conseguiram afastar a concorrência, saqueando depois a Índia a seu bel-prazer ao longo de mais de duzentos anos, mas esses são outros quinhentos…
No cenário que se nos apresenta – a cidade portuária de Chandannagar, mais propriamente o sítio de Farashdanga –, e aproveitando-se da agravada fraqueza lusitana dos primórdios de Oitocentos, digladiavam-se franceses e holandeses, tendo os primeiros predominado ao estabelecerem feitoria, em 1825. Conseguiriam estes manter pé bem assente na Índia embora acabasse por sobraçar todo o subcontinente perante o imparável poderio britânico. Temos então um jovem português, dedicado praticante da primeiríssima das artes, movimentando-se em território hostil; outrora propício à sua gente pioneira em terras de Bengala, agora em fase terminal, o que talvez explique o apelido Hensman atribuído ao nosso Antony Firingee, nome pelo qual ficaria conhecido o filho do mercador de sal. Não obstante, e apesar da turbulência da época, prenhe de feroz competição comercial, António surgirá como nome maior da composição e interpretação de cantos devocionais à deusa Kali (ou Durga). Rapidamente aprende e aperfeiçoa o idioma bengali, ao ponto de compor as complexas e intensas trovas que interpretava com grande à vontade durante os kavigans, animados confrontos entre poetas cabendo ao público decidir qual o mais dotado. Essa tradição de cantar ao desafio (neste caso, poetar ao desafio) é, de resto, comum em todas sociedades. Adivinha-se o desagrado do pai. Certamente gostaria de ter visto o filho trilhar os seus passos em vez de o ver transformado num excêntrico bardo. António, de facto, não estava minimamente talhado para os secos e molhados, procurando nos recônditos bucólicos de Bengala o ambiente propício para tanger o seu alaúde e ouvir os poetas locais que apaixonadamente invocavam a deusa mais venerada daquela vasta região. António passava grande parte do tempo entre essa gente e os iogues itinerantes, viajando e fumando com eles o chillum sagrado, meditando e praticando sadhana, os exercícios espirituais comuns às tradições hindu, budista, jainista e sikh.
Jaggi Vasudev, professor e iogue, define a sadhana da seguinte maneira: “Tudo pode ser sadhana. A forma como você come, como se senta, como se comporta, como respira, como pensa e como expressa as suas emoções – tudo isso é sadhana. Sadhana não significa nenhum tipo específico de actividade, tão só tudo usar como ferramenta para o próprio bem-estar”. Seria com certeza de grande excelência o nível do Bengali falado por António, caso contrário nunca teria sido autorizado a competir, e muito menos ganharia kavigans, como aconteceu inúmeras vezes, e contra pesos pesados do cariz de um Bhola Moira, o mais afamado poeta de Bengala. O facto de um estrangeiro ser capaz de domar a língua local e ultrapassar em popularidade reputadas individualidades era intolerável para os bengalis mais nacionalistas. Consideravam o trovador português uma afronta, uma ameaça. Mas na realidade, António, que sempre mantivera contacto directo com as gentes da Bengala pastoral, não deveria sequer ser considerado estrangeiro. A sua completa aculturação não era caso único entre portugueses, habituados a séculos de miscigenação.
Ao contrário dos restantes europeus, os filhos da Lusitânia tinham partido para o mundo com o intuito de ficar, como, de resto, ficaram. Não nos deve, por isso, surpreender a postura de António, embora nos possa fazer corar de vergonha, àqueles que temos anos e anos de Macau e apenas proferimos umas quantas frases em Cantonense. Funcionando em circuito fechado, os petulantes brâmanes situavam os europeus ao nível dos intocáveis. Eram incapazes, por exemplo, de deixar António entrar em suas casas para beber um copo de água e ridicularizavam-no por este envergar trajes locais, zombando ainda da sua devoção a Kali. Como ousava, se era crente em Jesus Cristo e na sua Igreja? António respondia-lhes ecumenicamente: “Não há diferença entre Cristo e Kali, meus irmãos…”.
Na época, praticava-se ainda em Bengala o mais obsoleto dos rituais misóginos. Refiro-me ao sati, esse macabro costume em que a viúva se imolava na pira do marido ou cometia suicídio de outra forma qualquer logo após a morte do mesmo. O voluntarismo nessa questão não chegava a 1 por cento dos casos, sendo condicionadas as restantes pobres mulheres pelo peso da cruel tradição. A prática do sati seria abolida, a par com a interdição dos casamentos infantis, pelo rajá Ram Mohan Roy, figura maior das reformas sociais e educacionais na Índia, dito “pai do Renascimento hindu”. Recorde-se que, séculos antes, a prática fora abolida em Goa por ordem de Afonso de Albuquerque. Afinal, qual a razão de ser de tão bárbaro costume, perguntará o leitor? Era muito difícil, para uma mulher brâmane, encontrar marido pois só podia casar com brâmanes de origem bengali, colocando desde logo fora da contenda pretendentes elegíveis de outras regiões do subcontinente. Os europeus, então, eram estranhas criaturas que nem sequer entravam na equação. Esta contextualização histórica dá-nos uma ideia do perigo a que se expôs António no momento em que se apaixonou por uma viúva brâmane – uma certa Soudamini – e a levou para casa, salvando-a assim da auto-imolação. Foi o “fuel” necessário aos argumentos dos seus inimigos. Como ousava ele? Não só tinha o desplante de cantar hinos às divindades locais como agora resgatava da fogueira uma brâmane privando-a de cumprir o seu dever. Estamos perante um facto inédito na história da Índia: pela primeira vez uma mulher da casta mais alta ousa viver abertamente com um homem europeu sem se importar com o que a sociedade pensa ou diz. António e Soudamini dedicaram-se um ao outro, praticaram o tantra e juntos construíram um templo ofertado a Kali, tendo no processo reunido à sua volta um pequeno número de seguidores. Mantém-se ainda de pé o dito templo, Firinghi Kalibari, na rua B.B Ganguly, em Bowbazar, Calcutá, sendo visitado anualmente por milhões de peregrinos. Como era expectável, os improváveis amantes foram atormentadas com constantes ataques. Nas competições, os poetas rivais traziam frequentemente à baila o nome de Soudamini com o intuito de provocar o português. Estávamos em 1830; em 2020 o panorama não mudou assim tanto. Na Índia de hoje quem ousa apaixonar-se por pessoa de outro credo ou casta enfrenta sério risco de ostracismo.
Indiferentes às hienas inquisidoras, António e Soudamini continuaram a viver intensamente o seu amor, e inspirado por ele o português compôs diversas músicas “agamani” que o elevariam ao mais elevado patamar artístico. Aproveitando a sua ausência (o músico fora participar numa importante cerimónia à deusa Durga), um grupo de fanáticos hindus concretizaram o que há muito almejavam: deitaram fogo ao ashram onde António vivia e queimaram viva a sua mulher Soudamini, grávida de alguns meses. Ironia do destino: regressaria o português a casa, após a sua maior proeza artística, para constatar a perda daquilo que mais amava. Embora tenha conquistado o coração dos bengaleses com a sua música, Antony Firingee acabaria vítima da ortodoxia e do fanatismo que assolava a região, embora o facto de estarmos aqui a recordá-lo seja a prova de que, em última análise, perdurou o amor.
Joaquim Magalhães de Castro