As idiossincrasias de uma atribulada região
A estratégica aliança entre mercenários portugueses e o soberano arracanês irá alterar-se radicalmente com a chegada aos arrabaldes de Chatigão, em 1665, do general mogol Shaista Khan. Trazia ordens do imperador Aurangzeb para pôr cobro à actividade pirática naquelas bandas; mas também vinha disposto a vingar Shah Shuja, sobrinho do governador de Bengala, mandado assassinar pelo rei do Arracão, Sanda Thudhamma, quando aquele buscara refúgio na corte arracanesa após a derrota sofrida frente ao irmão Mir Jumla. O episódio dá uma vaga ideia das idiossincrasias e volatilidade das relações e alianças entre parentescos, reinos e senhorios naquela sempre instável região. Não havia laço de sangue capaz de resistir à inebriante euforia do poder.
O hindu birmano-bengalês Sanda Thudhamma era considerado, entre os muçulmanos do Sul da Ásia, relevante e controversa figura. Descrevem-no os historiadores como imoral e mulherengo. No rol das suas atrocidades consta, além da mencionada traição ao príncipe mogol, o filicídio de três dos seus rebentos, o estupro e, por arrasto, suicídio forçado da sua filha Banu Begum (que abraçara a fé islâmica ao casar-se com um dos filhos de Aurangzeb), e ainda o aprisionamento de uma meia irmã em avançado estado de gravidez, filha do rei Narapdigyi (ou seja, o pai de Thudhamma), que no cárcere morreria de fome. Deste cruel monarca nos fala Syed Alaol, reputado poeta da corte.
Shaista Khan reuniu uma frota de trezentos navios e treze mil homens, comandados pelo próprio filho, e mandou cercar Chatigão, por terra e por mar, não sem antes enviar ao porto de Hugli um oficial de confiança com um recado para os portugueses dessa cidade. Pedia-lhes que contactassem os compatriotas de Chatigão e lhes sugerissem a deserção para o lado mogol, pois generosa seria a recompensa. Oferecia-lhes o imperador um vasto território onde poderiam formar uma colónia com as suas famílias. Tentadora oferta, imperial e propiciadora de melhores condições do que as dispostas pelo monarca arracanês, sendo por isso normal que tenha captivado a atenção desses aventureiros habituados a servir quem lhes desse mais. Mas havia-os também indispostos a abandonar o posto, e que revelaram a Sanda Thudhamma a intenção da maioria dos seus companheiros de armas, tendo o arracanês de imediato planeado a todos aniquilar. Esse seria o empurrão necessário para os indecisos passarem, de armas e bagagens, para o lado dos mogóis, tendo no processo queimado algumas embarcações arracanesas.
“A 19 de Dezembro de 1665”, regista a crónica local “Alamgirnama”, “cinquenta jaleias de firingis equipados com pistolas, mosquetes e munições desembarcaram em Noakhali acompanhados pelos respectivos familiares”. Só depois de terem abalado os nossos, ousa Shaista Khan atacar Chatigão, pois, como nota um dos seus capitães, “a partida dos portugueses era meia vitória”. Aos mais aptos, militarmente falando, convidaram-nos a participar na campanha em curso contra o rei do Arracão, enquanto os restantes eram realojados pelo governador de Bengala numa vasta região, doze milhas a sul de Daca, que doravante passou a ser designada de Feringhi Bazar e onde subsistem, ainda hoje, comunidades de luso-descendentes. Acerca deste episódio, tem o jesuíta Niccolao Manucci, autor da “Storia do Mogor”, versão diversa. Diz-nos que Shaista Khan encarregara um português de Hugli, chamado António Rego, de fazer chegar um importante recado ao seu irmão Sebastião Gonçalves, residente em Chatigão. Oferecia-lhes, a um e a outro, um bom quinhão se lograssem entregar-lhe de bandeja essa cidade, ou seja, isenta de resistência. Sebastião, conhecedor dessas paragens como poucos, terá instruído António a posicionar a frota mongol junto à ilha de Sundiva, e desse modo pôde Chatigão ser capturada sem qualquer baixa.
Será este Gonçalves o nosso conhecido Tibau, caído em desgraça décadas antes? Façamos aqui alguma aritmética. Tibau chegou à Índia em 1607, tinha então 25 anos, o que lhe atribui, por altura da conquista de Chatigão, a provectíssima idade de 83 anos. O cenário é bastante plausível, embora seja pouco credível que o português detivesse então o poder e a influência de outrora, como sugere o texto de Manucci. E isto, claro, se presumirmos estarmos perante a mesma personagem. O único senão nesta hipótese é o diferente apelido dos dois irmãos, de resto, coisa nada incomum na época a que nos reportamos. No atrás citado registo da tradição oral de Bengala consta o episódio do encontro dos portugueses com o mogol Farhad Khan, senhor da região de Noakhali, que tratou de enviar para Daca um certo “capitão Moor” (provavelmente uma corruptela de Mourão ou Morais) com alguns dos mais valorosos homens, tendo enchido de presentes e favores os restantes. Perguntou-lhes o nababo qual o salário auferido em terra arracanesa e os portugueses responderam-lhe que toda a Bengala estava ao seu dispor, pois dela retiravam o sustento “sem impedimentos e sem prestar contas a ninguém”. Jamais deixavam pagamentos em atraso e tinham na sua posse “os registos de deve e haver dos últimos quarenta anos de todos os vilarejos”. Pode-se inferir desta resposta, a extrema fraqueza das autoridades de Bengala, reféns das estratégias de um grupo de aventureiros estrangeiros. Não obstante, a chegada, ou seja, a “oficialização” dos temíveis firingis, tranquilizou as populações de Bengala, pois agora passavam a estar do seu lado em vez de constituir ameaça. Em jeito de recompensa, o nababo mogol libertou duas mil rupias do próprio bolso para prover as necessidades “do capitão Moor e dos outros firingis vindos de Chatigão” e do tesouro imperial passaria doravante a sair a módica quantia mensal de 500 rupias, “destinadas ao capitão”, e confortáveis salários para “outros membros da tribo”.
Verdade seja dita. A conquista de Chatigão e do domínio déltico dos Sundarbans quebrou o poderio dos aventureiros portugueses obrigando-os a juntar esforços com os compatriotas mercadores espalhados pelos diversos recantos de Bengala, sobretudo após o cerco a Hugli. De guerreiros passaram a pacíficos civis não deixando nunca, no caso particular de Chatigão, os que aí tinham permanecido, de manter a sua influência e diplomacia. Em 1727, deles dá notícia o inglês Alexander Hamilton no seu “A New Account of The East Indies”: “As autoridades mogóis mantêm um juiz para fazer aplicar os preceitos judiciais junto de gentios e maometanos, isentando da mesma os descendentes de portugueses”.
Anos antes, o padre jesuíta Barbier descrevera-nos, numa carta com data de 1713 e enviada a um seu confrade, a visita episcopal efectuada pelo reverendo François Laynez, bispo de São Tomé de Meliapor, dando-nos nela informação detalhada acerca dos firingis e seus hábitos. Diz-nos que estavam divididos em três colónias, não muitos distantes umas das outras, cada uma delas lideradas por um capitão e assistidas por um missionário encarregado de ministrar os Sacramentos numa igreja de pedra e cal. Diz-nos ainda o religioso francês que aqueles eram tidos em grande consideração pelos nativos, tinham direito a porte de arma e celebravam as suas festividades, segundo calendário apropriado, com igual liberdade à usufruída na Europa. O religioso gaulês dá particular destaque à celebração da Semana Santa, mostrando-se encantado por ver toda aquela gente empenhada em tão piedoso acto. Diz-nos que “o repositório, onde fora colocado o Santíssimo Sacramento, ocupava toda a altura da igreja na forma de um trono com vários níveis”. E em vez dos habituais prateados e dourados, eram as folhas de estanho, “recém derretidas e esculpidas em forma de flores e festões, aplicadas numa base de cor vermelha”, que surtiam “o mais agradável dos efeitos”.
Teve início esta visita episcopal no Dia da Purificação da Virgem, ano de 1713, e durante essa sua estada em Chatigão o bispo François Laynez administrou o Crisma a mais de dois mil cristãos.
Joaquim Magalhães de Castro