O Vaticano e as divindades pagãs
A ideia de construir um museu nasceu há mais de cinco séculos na cabeça de alguns Papas. A palavra “museu” não existia e, menos ainda, o conceito.
A ocasião surgiu por causa da abundância de obras de arte da época do Império Romano que os donos deitavam fora e corriam o risco de se perderem. Como se tratava sobretudo de uma colecção de divindades pagãs, o povo chamou à colecção “Casa das musas”, ou “Museu”. As musas eram as nove deusas gregas inspiradoras da arte e da ciência.
A intenção dos Papas não foi organizar um depósito fechado, onde só os eruditos fossem admitidos, o objectivo foi reunir uma colecção que pudesse ser visitada por qualquer cidadão e fomentar as visitas. Organizar todo aquele acervo deu imenso trabalho e exigiu a construção de um edifício invulgarmente grande, uma espécie de enorme palácio aberto a todos os visitantes. Calcula-se o entusiasmo dos arquitectos a quem coube inventar o tipo novo de edifício que correspondia àquele programa arquitectónico diferente de tudo o que se tinha feito até então.
A proposta de reunir uma colecção tão vasta e construir pavilhões tão gigantescos não foi bem recebida por todos. Alguns criticavam o que consideravam ser a promoção do luxo, do supérfluo, em contraste com a austeridade da vida de Cristo. Vários bispos eram desta opinião e inclusivamente um Papa interrompeu as visitas e mandou cobrir com tapumes algumas estátuas que decoravam as fachadas exteriores. Outra objecção tinha a ver com o conteúdo maioritariamente pagão das obras de arte, porque o Museu do Vaticano tinha algumas peças cristãs, sobretudo pinturas, mas a maioria das obras eram representações de divindades pagãs. Estas pessoas temiam que o museu se tornasse uma espécie de templo de uma religião sincrética.
Claro que os Papas que idearam o Museu do Vaticano não queriam favorecer o luxo mas o apreço pela beleza. Foi Deus quem criou paisagens deslumbrantes, carregadas de beleza, desde o pormenor da borboleta pousada na flor até ao brilho cintilante das constelações longínquas. Foi Deus quem impregnou o Universo de beleza. A cor, a luz, o fogo, a música, até a eloquência do discurso e a emoção do amor. As obras de arte realmente belas participam na sinfonia cósmica da beleza. Segundo os Papas, toda a beleza tem origem em Deus e conduz as almas a Deus.
Também é evidente que o Museu do Vaticano não se destinava a ser um novo templo pagão e, de facto, a preocupação dos que temiam que isso acontecesse não correspondia a um perigo real. Tanto quanto se sabe, nenhum visitante do museu se tornou pagão no final da visita.
Há dias, um grupo de individualidades de todo o mundo interpretou a presença de um fetiche amazónico no Vaticano como atitude idolátrica do Papa Francisco e dos bispos que estavam com ele. O teor violentíssimo com que condenaram o Papa mostra o profundo sofrimento que aquela cena lhes suscitou. O tom exaltado do manifesto reflecte certamente um genuíno amor a Deus mas talvez aquela agressividade seja interpretada por alguns como falta de respeito e de amor ao Romano Pontífice. De certa maneira, a história repete-se. Não nos compete julgar ninguém. Rezamos por todos.
José Maria C.S. André
Professor no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa