MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 10

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 10

Um casamento garrido e a capela de Panjora

Encetamos esta semana novel jornada, desta feita com o prumo apontado a Nagori, na região de Kaliganj, a cerca de trinta quilómetros de Daca, reputado lugarejo pela importante festividade em honra do Santo António ali assinalada todos os anos. Mas deixemos por ora tranquilo o nosso Bulhões e concentremo-nos no seu confrade Nicolau de Tolentino, anfitrião de uma singela igreja construída pelos portugueses em 1663, como bem indica apropriado debuxo numa das arcadas do pequeno campanário. Encontra-se este bem patrimonial (a pedir caridosas obras de restauro) a uns cinquenta metros, se tanto, de um moderno templo, esse abarcador de vasto terreiro e alinhado cemitério ao modo saxão: relvado, cruzes brancas, e basta. Foi enquanto aqui assumia funções episcopais, entre 1734 a 1742, que o jesuíta Manuel de Assumpção redigiu o primeiro compêndio de língua bengali, obra publicada em Lisboa, em 1743, em dois tomos: o primeiro, a gramática propriamente dita; o segundo, um dicionário Bengali-Português. Este importante episódio é leccionado nos bancos das escolas locais a petizes de tenra idade que em adultos tal matéria certamente não olvidarão.

Prosou Assumpção o Bengali numa altura em que estavam por definir as inevitáveis normas de conduta, como bem ilustram as cartas e livros por ele publicados em Lisboa, em 1743 e 1778, recorrendo sempre aos caracteres latinos, pois não estava ainda disponível para a imprensa o alfabeto bengali. Com certeza não terá escapado tão relevante pormenor ao bem informado jornalista Ihtisham Kabir (de visita a Nagori para escrever um artigo sobre a escolas locais que a Diocese mantém sob a sua alçada) com quem tenho a ventura de me cruzar. «Consta que Tajuddin Ahmad, o primeiro Primeiro-ministro do Bangladesh, chegou a estudar nesta escola durante algum tempo», informa.

Fundada em 1920 por missionários portugueses, a Saint Nicholas High School, frequentada por alunos de todo o País, muitos deles em regime de internato, preza por manter os predicados ali enraizados há séculos, preocupando-se em educar “não só os cérebros como também os corações”. Atentaria mais tarde, ao procurar novas informações no universo cibernético, aos elogios proferidos por antigos alunos dessa instituição, citados pelo Daily Star, realçando “a dedicação dos professores”, a maneira como “cuidaram de nós, indo muito além das suas responsabilidades académicas”. Dizia um certo Shah Habibur Md Rahman: “tratavam-nos até quando estávamos doentes, pois eram treinados para todo o tipo de situações”. Afirmava, por sua vez, o coronel na reforma Joseph A. Rozario: “muitos dos meus colegas de classe tornaram-se professores de universidades públicas, altos funcionários da administração civil, do exército e da polícia”. É claro que o desporto, sobretudo o futebol, preponderava no currículo escolar e ao ponto de, como notava o director do estabelecimento, Chandon Benedict Gomes, “termos vencido por diversas vezes o campeonato nacional da modalidade”.

A diocese de Nagori tem também a seu cargo três escolas primárias, vários jardins-de-infância e duas escolas para raparigas: a Panjora Girls High School, estabelecida em 1976, e a High School Tumulia Saint Mary que celebrou o seu 75º aniversário no ano transacto. Tão forte aposta no ensino resulta no facto de serem muitas as famílias locais com filhos ou filhos a viver na América do Norte ou na Europa. No decorrer da nossa conversa, Ihtisham Kabir lembra as renhidas lutas pelo poder entre «sultões de Bengala, mogóis, reis de Tripura e arracaneses» aquando da chegada dos portugueses à região. E estes, sobretudo em Chittagong e arredores, frequentemente se envolveram nesses conflitos, lutando neste ou naqueloutro campo, e sempre no interesse próprio. Porém, ressalva nos seja feita. Algo de fundo nos diferenciava dos demais visitantes europeus. «Os mercadores portugueses exportavam os nossos produtos em vez de mudar a produção para a sua terra natal», diz Kabir. «Além disso» – prossegue – «casaram-se com mulheres locais e introduziram inúmeras frutas e verduras exóticas».

O jornalista admira particularmente a agave, de folhas esguias e cintilantes flores amarelas. «Quando murcham e caem, novas plantas brotam delas. Muitas vezes me perguntei como essa planta, tão distintamente americana, chegou até aqui», adianta. A resposta encontrá-la-ia no livro de Joachim Joseph A. Campos, “History of the Portuguese in Bengal”, ainda hoje obra de referência e de consulta obrigatória no que àquela região diz respeito. «Ao lê-lo apercebi-me da fortíssima conexão portuguesa com a nossa terra. Além do agave, vocês trouxeram-nos o ananás, a batata, a goiaba, a castanha de caju e a carambola, legando-nos muitas outras influências duradouras na nossa cultura e modo de vida». Kabir recorda, a título de exemplo, «o balichão e o pudim feito de ovos», e, claro, palavras do seu quotidiano que claramente derivam do Português. Para não correr o risco de me repetir, destaco as quatro que desconhecia: perek (prego), janala (janela), kopi (couve) e pauruti (pão). «Embora possa parecer um país distante, Portugal, afinal, não fica assim tão longe, não é?», conclui em jeito de pergunta o simpático jornalista.

No interior da igreja decorrem em simultâneo duas cerimónias matrimoniais. E lá os vejo, em solene pose, homens e mulheres trajando as suas melhores roupas e evocando cânticos e preces. Obrigatório, sempre, o habitual sincretismo religioso: grinaldas de flores de jasmim em redor dos pescoços do noivo e da noiva, na melhor tradição hindu; oficiantes e fiéis descalços, sendo a excepção os nubentes. Não fora a estatueta do nosso santo-antoninho, em lugar de destaque, diria estar perante um ritual hindu. Num dos casais – tanto no noivo, de fato e gravata, como na noiva, toda de branco, lindíssima, diga-se de passagem – são óbvios os traços europeus. Na cabeça da noiva do segundo casal apenas o véu é cristão. Tudo o resto – o sari, o diadema, as flores, a abundante maquilhagem – revela índole hindu. Bordada a dourado nos paramentos do padre está a pomba do Espírito Santo e, no pano que cobre o altar, a imagem de Cristo e um Aleluia orlado a ponto cruz. Também entre os fiéis são vários os rostos com prováveis raízes neste nosso cantinho ao fundo da Europa. Um deles convida-me para a boda numa aldeia próxima; infelizmente vejo-me obrigado a declinar a simpática proposta.

No exterior, os músicos contratados aguardam a conclusão da cerimónia. Encostados à parede da entrada do cemitério velado por um anjo de pedra repousam, entre outras percussões, os tipicamente portugueses tambores de caixilho. Ao lado, a secção de metais: trompetes, trombones, clarinetes. Ao ver-me puxar da máquina fotográfica, de imediato, como bons bengalis, posam os ditos músicos para a chapa. Primeiro simulam que tocam mas logo (não resistem!) emitem notas soltas, tangendo em surdina o que mais tarde irão fazer soar com paixão. Muito gosta de cinema esta gente! Está bem de ver de onde vieram as orquestras de ciganos que povoam os filmes de Emir Kusturica. É isto, sem tirar nem pôr. A orquestra acompanha o casal durante as escassas centenas de metros que separam a igreja do lugar de Panjora, onde se situa a capelinha do Santo António, dando largas ao improviso num controlado chinfrim. Dançam, exibem malabarismos com os trompetes e as baquetas dos tambores tingidos com pó vermelho. Sabendo que estão a ser filmados, esmeram-se ao milímetro e exageram em tudo. Concluem a actuação, em jeito de orgasmo jazzístico, à entrada do portão da capela, ainda em terreno profano. É uma grande “finale” de vários minutos acompanhada de exuberantes folias e momentos de quase transe.

Encimam a capelinha, com a data de 1906 no frontispício, dois escudos. Um deles arvora as armas de Portugal; o outro, aquilo que julgo ser a coroa da diocese de Meliapor. Em baixo, os dizeres “Missão Portugueza de Bengala”. A multicolorida fachada repleta de ornatos a fazer lembrar um templo hindu é exemplo perfeito do sincretismo já aqui referido, neste caso, no domínio da arquitectura. Em frente, assente num relvado bem aparado e encimado por uma cruz ergue-se o mausoléu de uma benfeitora local: “aqui jaz a grande benemérita Catharina Pires que antes de 1815 doou às Missões Portuguezas de Bengala as terras de Panjora e Madabpur. Paz à sua alma”. Assina: “T.Nkomtomio, bispo de Meliapur E.”. Para completar o quadro exterior só falta mesmo mencionar a residência das freiras, num terreno adjacente à capela, e uma estrutura de metal que serve de palco e altar a uma imensa missa campal aquando a peregrinação anual. No interior do templo, em cima do sacrário, está o Santo António ladeado das estátuas, em ponto pequeno, da Virgem Maria e do São José com o Menino ao colo. Nos lados há mais estátuas do santo lisboeta, dentro de relicários ou a descoberto, e a todos elas, à boa maneira hindu, pedem a bênção os muitos peregrinos que ali se deslocam.

Joaquim Magalhães de Castro

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