O Nobel para beijos e abraços

MEDICINA

O Nobel para beijos e abraços

O prémio foi atribuído a David Julius e a Ardem Patapoutian, estudiosos das sensações térmicas e tácteis. Os dois cientistas descobriram os mecanismos electroquímicos que nos permitem perceber inúmeras nuances tácteis em zonas altamente sensíveis, como as mãos.

Muitos estavam à espera que este ano o Prémio Nobel da Medicina fosse para cientistas que, com grandes investimentos em inteligência e dinheiro, tivessem realizado em tempo recorde vacinas para travar a pandemia de Covid-19, responsável por mais de cinco milhões de mortos em todo o mundo. Mas, no dia 10 de Dezembro de 2021, por razões de segurança, cada um dos premiados recebeu o prémio no seu país pelas suas pesquisas que ofereceram respostas a perguntas que aparentemente estão longe da actualidade: como sentimos o calor e o frio e como funciona o nosso tacto.

São eles David Julius, 66 anos, norte-americano, e Ardem Patapoutian, 54 anos, americano mas de origem libanesa. Trabalhando de forma independente, descobriram, respectivamente, os mecanismos electroquímicos que nos permitem perceber inúmeras nuances de temperatura e pressões diferentes sobre a pele em todo o nosso corpo, especialmente em zonas altamente sensíveis como as mãos, os pés, os lábios e a língua. São funções essenciais para a vida, e não dizem respeito apenas à epiderme, mas também aos órgãos internos, como por exemplo a pressão do ar nos pulmões e da urina na bexiga.

É óbvio que os jornalistas de sempre gritaram escândalo. Como é possível que a Academia de Estocolmo tenha ignorado a luta contra o Covid? Na verdade, não a ignorou, pelo contrário, planeou uma forma indirecta, mas muito eficaz, de ligar este tema com o drama da pandemia, pois não seria possível tecnicamente premiar a pesquisa sobre as vacinas contra o Covid já em 2021. Antes de mais, o Estatuto do Nobel não permite atribuir o prémio a mais do que três cientistas, e seria muito difícil escolhê-los de entre os milhares que trabalharam no estudo do Sars-CoV-2 e, paralelamente, à invenção de uma dezena de diferentes vacinas, todas eficazes, em várias medidas, e algumas mais inovadoras e outras mais tradicionais.

Além disso, apesar de terem sido testadas com sucesso sobre milhões de pessoas, nem todas as vacinas foram reconhecidas pelas mesmas autoridades que certificam a segurança dos fármacos. Na Europa temos a Agência Europeia do Medicamento, que geralmente age de acordo com a “Food and Drug Administration” norte-americana. A vacina russa não comunicou completamente os dados da sua experiência, e muito menos o fizeram as vacinas chinesas. Premiar um ou outro com a pandemia em curso teria sido prematuro e teria criado problemas geopolíticos.

Mas o Nobel da Medicina 2021 está relacionado com o Covid-19. As sensações tácteis têm que ver com um aspecto afectivo (abraços, beijos, proximidade física) que a pandemia repentinamente excluiu da nossa vida, agravando o drama da doença: pais e filhos, maridos e mulheres morreram sem o conforto de uma carícia. As sensações térmicas envolvem um fundamental aspecto fisiológico: febre, regulação da temperatura dos órgãos internos, respiração. E todos sabemos que o Covid, suscitando uma reacção inflamatória anormal, atinge sobretudo a respiração. Ainda hoje todos nós passamos por um controlo da temperatura quando entramos em lugares sobrelotados.

A descoberta dos sensores de temperatura e pressão já tinha sido premiada com o Nobel de Medicina em 1944, entregue a Joseph Erlanger e Herbert Gasser. Ficou por compreender como é que os sensores transformam os dados perceptivos primários num sinal electroquímico interpretável pelo cérebro. David Julius partiu do grande número de genes envolvidos na formação dos receptores celulares e desligou-os um a um até isolar o gene que controla o receptor da temperatura, depois chamado Trpv1. Isto permitiu compreender os diferentes sinais electroquímicos que entram em acção em diferentes temperaturas, do gelo à água a ferver.

Um facto curioso, na sua investigação, Julius utilizou o piripíri, ou melhor, o seu princípio activo, a capsaicina. A sensação do picante é de facto exclusivamente de natureza térmica, e a capsaicina permitiu dosear a temperatura diferenciando os sensores e os mensageiros neuroquímicos que se dirigem ao cérebro.

MAIS CLARO COMO TEMPERATURA E PRESSÃO SÃO PERCEPCIONADAS

Giovanni Appendino, professor de Farmacologia na Universidade de Piemonte Oriental, colaborador de Patapoutian, é um dos maiores estudiosos da capsaicina. «As descobertas de Julius e Patapoutian», explica, «clarificaram as bases moleculares de como percepcionamos a temperatura e a pressão. São sensações primordiais, viscerais, mas precisamente por isso são difíceis de modular em sentido terapêutico. A morfina age sobre a percepção da dor, com uma resposta a nível superior; a capsaicina actua sobre a própria geração do estímulo da dor. Inactivar o receptor da capsaicina representa uma abordagem racional à terapia da dor, mas foi um insucesso na pesquisa farmacêutica. Este sensor está associado não apenas à geração da dor, mas a uma panóplia de funções homeostáticas, isto é, do bom funcionamento do nosso organismo, e espécies – específicas. Ao primeiro voluntário que foi administrado um bloqueador do receptor da capsaicina a temperatura subiu a 41 graus e quase morreu, um efeito não observado nos modelos animais. Remediou-se este inconveniente, mas outros surgiram imediatamente numa cadeia sem fim. Os receptores da capsaicina e do mentol não são apenas termómetros moleculares, assim como os do doce e do amargo não são só associados ao gosto. Como temos receptores do amargo nas vias aéreas e no estômago, também temos receptores de capsaicina no cérebro e do mentol na próstata, tecidos que estão a uma temperatura constante. O que estão ali a fazer e o que é que os activa é algo desconhecido, mas na natureza nunca existe o supérfluo e uma razão haverá certamente, mesmo que agora nos escape. Estamos só no início destas pesquisas que revolucionaram a fisiologia».

Com uma técnica análoga aquela de Julius, Patapoutian identificou os genes Piezo1 e Piezo2 que presidem à percepção das pressões mecânicas, desde um toque ligeiro – uma carícia, um abraço fraterno – ao mais brutal. O peso dos objectos, incluindo aquele do nosso corpo, outra coisa não é senão uma pressão exercida sobre a pele: especialmente importantes são os sensores tácteis da planta dos pés porque – juntamente com o sistema límbico que está na orelha interna – são essenciais em toda a actividade motora e desportiva: o equilíbrio no caminhar, a corrida, o salto.

Muitas pesquisas recentes dizem respeito à importância dos abraços para a nossa sensação de bem-estar. “Durante um abraço”, escrevem Francesco Bruno, neuropsiquiatra, e Sonia Caterini, bióloga (da Universidade de Roma), “activam-se as áreas cerebrais envolvidas na elaboração das informações sociais e emotivas: córtex insular, amígdala, hipocampo…”. Daí deriva um efeito benéfico devido à libertação de oxitocina, a hormona neural que “reduz os conflitos, aumenta a proximidade e a ligação entre as pessoas, torna-nos mais fiéis, sinceros e empáticos, melhora o reconhecimento das emoções e a memória, mitiga o stresse e influencia positivamente o sistema cardiovascular e imunitário”. O Nobel 2021, portanto, não esqueceu o Covid. No próximo ano poderá calhar a algum daqueles que deram um contributo mais determinante para chegar à vacina.

CAIXA

Premiados de 2021

O Prémio Nobel é atribuído desde 1901 a pessoas ou instituições que contribuam para a Humanidade, nas áreas da Medicina, Física, Literatura, Economia e Paz. Além do Nobel da Medicina de que falamos neste artigo, o tanzaniano e refugiado Abdulrazak Gurnah foi o vencedor do Prémio Nobel da Literatura. Na Física, Syukuro Manabe, Klaus Hasselmann e Giorgio Parisi foram galardoados por estudos relativos ao conhecimento do clima da Terra. Banjamin List e David W. C. MacMillan dividiram o Nobel da Química por desenvolverem catalisadores orgânicos e mais baratos, mais amigos do ambiente. O Nobel da Paz foi entregue aos jornalistas Maria Ressa e Dmitry Muratov, pela “sua corajosa luta pela liberdade de expressão nas Filipinas e na Rússia”. Na Economia, foram três os laureados: David Card, Joshua D. Angrist e Guido W. Imbens, por investigações na área do mercado de trabalho. Pode obter mais informações sobre o Prémio Nobel e os galardoados em https://www.nobelprize.org/.

PIERO BIANUCCI

In Família Cristã

LEGENDA:David Julius e Ardem Patapoutian

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *