O sultanato da mulher-almirante
Habitada desde o Mesolítico, a província do Achém é fértil em achados arqueológicos similares aos de Toquim, a norte de Hanói, o que permite que se estabeleçam paralelos entre os nativos de ambas as regiões, embora tudo o que se conhece da sua história antes do século XVI continue envolto em lendas. Os anais da corte do imperador han Wang Mang referem, por exemplo, uma missão enviada a Hwang Che, o mítico “reino de Ouro”, outrora citado pelo grego Ptolemeu, para comprar um rinoceronte destinado aos jardins imperiais. Caprichos mandarínicos, certamente. Mais pragmática seria a viagem de Zheng He, dez séculos mais tarde, em 1414. O almirante deixou como oferta um gigantesco sino – “esfera do mundo” – que é hoje a principal vedeta do museu estatal. Mas, antes de He, centenas de outros chineses, mercadores, ali operaram, em concorrência com árabes, malaios, gujaratis e tâmiles, atraídos pelo arroz, a pimenta, a seda bruta, o benjoim, a cânfora, a folha de bétele e outras riquezas da terra.
Importantes entrepostos mercantis à escala regional e internacional, os portos do Norte de Samatra (Achém, Pedir, Samudera-Pacém) desde logo atraíram os portugueses, numa primeira fase em busca da seda. Embora não fosse de tão boa qualidade como a chinesa, tornara-se apetecível graças ao seu distinto desenho. As naus com a Cruz de Cristo aportariam ao Achém pela primeira vez em 1509, fazendo visitas aos reinos de Pedir e de Samudera-Pacém. Conflitos de interesses, de teor geoestratégico e religioso, depressa transformariam lusos e achéns em arqui-rivais no controlo do comércio em todo o Sudeste Asiático. Nos mares, a armada do sultão local, constituída por mais de 500 galeões com capacidade para oitocentos homens, era tão ou mais poderosa do que qualquer armada europeia. Como testemunho dessa época de intensas lutas sem quartel, ergue-se, a poucos quilómetros de Banda Aceh, a fortaleza de Indra Patra. Atribuída aos portugueses, a construção original deve ser, porém, anterior à islamização da ilha, ainda no período hindu.
Orgulhava-se o Achém de ser a “varanda de Meca”, dado que por ali penetrara o Islamismo que depressa se propagaria a todo o arquipélago, «graças a cinco pios líderes religiosos». O mais famoso de entre eles, Fatahiliah, nascera em Pacém, estudara em Meca e ajudara o reino de Java a livrar-se dos portugueses de Demak. Dava-se, assim, início à ascensão do reino de Achém-Darussalam.
«When the kingdom of Samudera began declining and the terror of the Portuguese were mounting». Esta frase estampada numa brochura turística referia-se à “época colorida” do sultão Iskandar Muda, «um dos pilares do Islão democrático». Estranha democracia, outrora gerada, mas que, em pleno século XXI, continuava a impedir que um cidadão local alterasse a sua religião.
Durante o reinado de Iskandar Muda (1606-1636), referência histórica do Aceh, destacar-se-ia a almirante Laksamana Malahayati, considerada a principal resistente ao desejo português de se apoderar do sultanato, faceta que lhe daria direito a memorial e a nome de porto de mar. Outras mulheres se evidenciariam, umas sultanas; outras, meras guardiãs do palácio. Rezam as crónicas locais que «trezentos cavaleiros patrulhavam os terrenos do palácio à noite, e mais de três mil mulheres guardavam os pátios e aposentos». Mas que forma tão subtil de falar de concubinas!
Esta bravura feminina traduz-se hoje no atrevimento e na coqueteria das mulheres do Achém, sem dúvida, das mais belas da Indonésia.
No século XX, os sultões deram lugar aos generais. Durante largos anos governador da província de Aceh, um militar auto-intitulado Professor Doutor Syamguddin Mahumud assinava o texto dum panfleto dos serviços de turismo de Samatra onde vinha mencionado o nome de Lamno, «pequena e simpática vila famosa pelos seus habitantes louros». Assegurava Mahumud que o turista encontraria aí «achéns de olhos verdes e pele clara, descendentes de náufragos de um navio português do século XVI, que se miscigenaram com a população local». O suposto afundamento teria ocorrido «na costa do antigo reino de Daya». Essa era, pelo menos desde a década de 50 do século passado, a explicação oficial para a existência dessa sui generis comunidade. Às mulheres de Lamno, reputadas pela sua beleza, chamavam mata-biru (olhos azuis), sendo frequentemente apontadas, com orgulho, como exemplo da profunda miscigenação que desde os primórdios da história tivera lugar naquela zona do mundo. Constava até que muitas dessas «mulheres com olhos de boneca» eram com frequência raptadas e, contra a sua vontade, levadas para outras partes do arquipélago.
Uma outra explicação para a existência dessa comunidade apontava para as trocas comerciais entre portugueses e reis locais, não só em Daya, mas também em Samudera-Pacém, Lambri e Pedir, e consequentes contactos inter-raciais.
A leitura desse panfleto, que por mero acaso me chegara às mãos numa pensão de Medan, a capital da luxuriante Samatra, avivou-me a recordação de uma conversa tida com um amigo em Lisboa que conhecera essa comunidade.
Estava decidido. Tinha de os visitar, apesar das interdições impostas numa região declaradamente a ferro e fogo.
Joaquim Magalhães de Castro