Os tambores de Maniju
A pouco quilómetros de Bukkitingi, a aldeia de Maniju estende-se ao longo das margens de um lago com o mesmo nome, na cratera de um vulcão extinto há milhares de anos. Em certos pontos desse extenso lençol de água a profundidade chega a atingir os 480 metros. Maniju é um Toba em ponto pequeno e um desses sítios ideais para quem busca isolamento e sossego, por consequência, candidato à minha lista de escolhas.
Havia, contudo, um outro motivo para uma deslocação a Maniju. Fabricavam-se na aldeia os famosos tambores de caixilho utilizados em toda a Samatra que, como comprovam as investigações de Margret Kartomi, têm origem nos tambores de caixilho do norte de Portugal: «Desde os primórdios do Império os portugueses trouxeram para Malaca e outros centros coloniais imensas quantidades de instrumentos musicais, tais como violas, tambores de caixilho e cordofones de arco, possivelmente violinos altos, que eram chamados viola em português e em malaio biola».
Estes instrumentos eram tocados ao estilo europeu por escravos de várias origens nas grandes casas senhoriais dos portugueses e, mais tarde, nas dos holandeses. Charles Boxer recorda que, em 1637, em Macau, um jantar sumptuoso preparado pela mão-de-obra escrava seria acompanhado por «boa música, incluindo voz, harpa e viola». Lembra ainda o historiador que, em 1689, uma noiva de Batávia, proprietária de cinquenta e nove escravos, numa carta, afirmava que alguns deles tocavam harpa, violas e fagote durante as refeições. Ao «juntarem-se às grandes casas senhoriais», tornando-se, desse modo, cristãos, esses «portugueses negros», essencialmente escravos africanos e asiáticos, esperavam obter a nacionalidade portuguesa, o que acontecia com frequência. Muitas deles tinham apelidos portugueses e praticavam costumes portugueses. Como é sabido, dos poderes coloniais europeus, só Portugal encorajava os seus homens a casar-se com as mulheres locais e a instalarem-se nos países de acolhimento, porque, como salienta o historiador Paramita Abduracham, «ao criarem raízes nos seus países novos, também plantariam raízes para os interesses portugueses».
Margret Kartomi, a etno-musicóloga australiana que tem dedicado grande atenção à música de fusão luso-indonésia, menciona num seu estudo que «a música malaia de influência portuguesa, ligeiramente harmoniosa, desenvolveu vários estilos desde o período de contacto do mundo malaio com os Portugueses, no fim do século XV».
Essa música era habitualmente executada por agrupamentos compostos por violino (biola), violas, banjos, cavaquinhos, uma flauta, tambores e outros instrumentos de percussão que acompanhavam canções de dança denominadas ronggeng, joget (joguete), lagu dua e sinadung, particularmente populares na costa oriental de Samatra.
O curioso em tudo isto é que apesar do contacto das populações costeiras com os portugueses ter sido breve, contrariamente ao que aconteceu com os árabes, turcos e persas, perdurou na tradição local a música de raiz lusitana, sobretudo a designada por “kapri”, apropriada nas cerimónias de casamento e de acção de graças pelo nascimento de bebés. Outra das características da música desta região são os tambores de caixilho, tão comuns em Portugal, preferidos a outros instrumentos de percussão locais.
As bancas dos mercados na Indonésia apresentam uma variedade impressionante de cassetes e VCDs. Entre o sector da música tradicional, é habitual encontrar um tema sempre comum: o “kaparinyo”. Aquilo que começou por ser uma canção muito em voga na costa oeste da ilha de Samatra espalhar-se-ia a todo o arquipélago indonésio. Este kaparinyo deriva de um tema musical de clara influência portuguesa chamada “lagu cafrinyo” dedicado a uma rapariga goesa e que, supostamente, é ainda cantada em Tugu, povoação de luso-descendentes nos arredores de Jacarta. Este tipo de música que deriva da síntese da música e dança locais com a música portuguesa tem o nome de “kroncong”.
Diz Kartomi que «na sua forma textual e musical e no seu contexto predominantemente urbano, o kroncong é parecido com o fado». Aliás, os dois géneros têm raízes semelhantes. Se o fado, de raízes mouriscas e africanas, surgiu nas zonas mais pobres de Lisboa, sobretudo entre pessoas de ascendência mista africana e portuguesa, o kroncong desenvolveu-se nas áreas mais pobres de Batávia, sobretudo entre os euro-asiáticos. Tanto no fado como no kroncong as violas são essenciais, sendo o texto de ambos muitas das vezes improvisado.
Há ainda gente que, de festa em festa, de cerimónia em cerimónia, evoca as suas origens através da música e da dança. São os derradeiros tanjidores, que actuam, não só em Jacarta e arredores (Bogot, Krawang e Bekasi), como também na ilha de Samatra, na área de Kayuagung, a sul de Pelembang. O termo tanjidor deriva da palavra tanger. Os tangidores foram inicialmente instrumentistas de corda, mas a palavra depressa se associaria à música ao ar livre, adequada às procissões e também às exibições militares. Margret Kartomi lembra que em Samatra, as bandas tanjidor, «incluindo trombetas, tubas, trombones e tambores, apresentam-se em muitos casamentos e outras funções, ao passo que em Jacarta se apresentam em especial na altura do ano novo».
Joaquim Magalhães de Castro