Tudo mudou com o terramoto no Haiti
Mariana Palavra saiu de Macau há dez anos para engrossar as fileiras da UNICEF. Cumpriu missões em países como o Haiti – onde viveu na pele o devastador terramoto de 2010 –, Myanmar, Nepal ou Angola. Diz sentir-se como “peixe na água” em cenários de resposta a emergências e recentemente rumou a Moçambique onde assumiu um novo desafio: o de ajudar a reconstruir a Beira, após a passagem do ciclone Idai em meados de Março deste ano. A antiga jornalista da TDM esteve à conversa com O CLARIM.
O CLARIM– Está a traçar um percurso que já a levou a vários cenários de crise pelo mundo fora. Moçambique recupera da devastação causada pela passagem de duas tempestades tropicais. Em comparação com Angola, o que espera de diferente?
MARIANA PALAVRA– A dimensão da crise. Em Angola participei em algumas missões de resposta a emergências, nomeadamente em domínios ligados à saúde, como o aparecimento de surtos de cólera. Inundações houve algumas, mas nunca com esta dimensão. Por outro lado, a dimensão geográfica também: como é que que se lida com uma crise destas proporções num território que é várias vezes maior do que Portugal? Como é que alguém vai para o terreno e pode fazer alguma coisa de significativo num país tão grande? Provavelmente, terei que mudar de paradigma em relação à forma como penso ou como trabalho. É óbvio que não estou sozinha. Estou com outros colegas e há gente que, provavelmente, já terá experiência em cenários do género. Outra preocupação é a questão da língua. Apesar da língua oficial ser, obviamente, o Português, em Moçambique há uma série de línguas nacionais. Em Angola, apesar de tudo, infelizmente as línguas nacionais têm vindo a perder força. Este enfraquecimento acabou, ainda assim, por permitir que eu trabalhasse directamente com as comunidades.
CL– Não é a primeira vez que lida com uma situação de crise pós-emergência…
M.P.– Ora bem, no Haiti tive o antes, o durante e o depois. Estava no Haiti quando aconteceu o terramoto, participei na resposta e estive envolvida também na fase de recuperação. Para o Nepal fui um mês depois do terramoto. Ainda apanhei um segundo terramoto, mas tratou-se de uma situação de resposta imediata. Agora, a Moçambique, cheguei quando estavam decorridos mais de dois meses da passagem do ciclone. Vou estar em Moçambique por um período de seis meses, numa intervenção que se enquadra, espero eu, no que chamaríamos “esforços de recuperação”. Não é necessariamente uma fase de resposta de emergência, mas ainda há muita gente desalojada, que perdeu as casas, e muitas crianças que não vão à escola porque a escola foi destruída. Por outro lado, há a ameaça da cólera, que é um dos focos onde vou estar mais envolvida.
CL– É fundamental consciencializar a população de que é necessário ter algum cuidado com a água que se consome, com os alimentos. A informação pode fazer a diferença num cenário de crise como o que encontrou em Moçambique?
M.P.– Sim. Idealmente até nos cabe pensar mais além e trabalhar para que determinados comportamentos – nomeadamente de higiene – que têm repercussões na saúde, ao serem mudados possam vir a ter efeitos a longo prazo e, quem sabe, até alterados para sempre. Se as pessoas, de repente, conseguirem perceber como é que se faz a prevenção da cólera ou o que devem fazer quando se manifestam os primeiros sintomas, vão poder utilizar essa informação daqui a um ano ou a dois ou a três, quando se manifestar outro surto. O ideal é que estes surtos não venham sequer a acontecer e que as pessoas assimilem que têm de beber água tratada, que têm de lavar as mãos com água e sabão, e que se não tiverem sabão podem lavar com cinza. Quando há um surto de doença é mais fácil comunicar este tipo de recomendações porque há um medo efectivo de se ser contagiado. Há imensas coisas a acontecer à sua volta, há pessoas a morrer. O mais complicado é quando a doença vai embora e as pessoas recuperam os velhos hábitos.
CL– A informação que as agências internacionais fazem chegar às populações acaba por criar novos hábitos? Ou a mudança é difícil?
M.P.– Há estudos que demonstram que em alguns aspectos sim. No caso de Angola, que é para mim mais recente e que tenho mais presente, há aspectos muito interessantes, como a questão das latrinas. Trabalhei em aldeias nas quais não havia uma única latrina e onde as organizações internacionais têm vindo a fazer um trabalho interessante. O primeiro passo passa por fazer perceber, naquela aldeia especificamente, onde é que as pessoas fazem as necessidades e mapear a informação. Com a informação em mãos, o habitual é as pessoas ficaram um tanto ou quanto chocadas com isso. A partir daí, cabe-nos tentar explicar como é que, de um maneira tão barata, se pode construir uma latrina. Basicamente, o que é necessário é força braçal e uma enxada e aplicar algumas especificidades técnicas: a latrina tem que ter uns tantos metros de profundidade, estar situada a uns tantos metros de distância da casa e, de igual forma, a uns tantos metros de distância de rios e de lençóis de água, para que não sejam contaminados. São estruturas que podem ser tapadas com capim ou algo similar. São estruturas que não custam por aí além; o custo mais evidente é o do trabalho do homem ou da mulher da casa. Isto para dizer o quê? Os frutos do trabalho tornam-se visíveis quando, de repente, aparecem aldeias em que todas as casas já têm latrinas.
CL– Qual foi o cenário que, em termos pessoais, puxou mais por si? Foi a primeira experiência no Haiti e tudo o que se passou?
M.P.– Sim. Na altura do terramoto fui contactada por jornalistas de Portugal sobretudo, que me perguntavam: “O que é que mudou na sua vida?”. E eu lembro-me que na altura respondia que não tinha mudado nada. Mudei eu e mudou tudo com o terramoto no Haiti. Passados todos estes anos, acho que sim. Parece que há um antes e um depois. E eu não gostaria de ter mais nenhum antes e um depois, porque aquela experiência já foi mais do que suficiente para ter com que ligar para o resto da vida. Por todos os aspectos, pessoais e profissionais também. Quando o terramoto aconteceu, eu estava a passar por uma fase em que estava desiludida como a forma com a ONU funcionava. Queria sair dali. Esta inclusivamente a concorrer para a CCTV, na China. E de repente aquilo aconteceu e eu percebi que, se calhar, em termos profissionais era aquilo que fazia sentido eu fazer: resposta às emergências.
CL– Dez anos depois, uma aposta válida?
M.P.– O jornalismo é uma paixão e creio que será sempre. Aconteça o que acontecer, uma vez jornalista, sempre jornalista. Há alguma saudade das coisas que fazia como jornalista, mas creio que sim, que foi uma aposta válida. Tenho tido a sorte de pelo menos conseguir voltar aos sítios onde fui e sou feliz com alguma frequência e isso dá-me um bocadinho dos dois mundos. Consigo ter o mundo da resposta às emergências, mas também o mundo do conforto, dos amigos e da família. Nesse sentido, sim. Acho que sim. Tem-me permitido trabalhar com emoções muito fortes, mas tem-me permitido ter doses grandes de conforto, ao regressar às diferentes casas onde fui feliz.
Marco Carvalho