O universo da Flora Cochinchinense
Nascido em Lisboa em 1710, João de Loureiro estudou no Colégio de Santo Antão e entrou na Sociedade de Jesus em 1732. Frutuosas estadas em Goa e depois Macau, onde viveu quatro anos, dar-lhe-iam a bagagem necessária para voos mais arrojados. Parte em 1742 para a Cochinchina (região que abrange o actual sul do Vietname e uma significativa parte oriental do Camboja), onde residiria nos trinta e seis anos seguintes e onde consegue o feito de aceder à corte do rei, apesar de este ser hostil a europeus, em geral, e à evangelização, em particular. Fê-lo na condição de matemático e naturalista e, para conseguir autorização de residência, “fingiu” ser médico. Esgotadas as drogas e mezinhas que levara de Goa, deixando-o incapaz de continuar a exercer o seu improvisado mister, Loureiro dedica-se ao estudo da botânica, socorrendo-se da informação colhida junto dos locais. Assim vai desvendando os segredos das diferentes plantas, testando-as, sempre que possível, nos seus pacientes. Provavelmente devido a este seu empenho cedo cai nas boas graças das autoridades locais. É nomeado – pelo próprio monarca – presidente dos “estudos físicos e matemáticos da corte”. Por norma, proibidas eram todas as formas de actividade missionária, embora fosse tolerada “a propagação do Evangelho fora dos lugares públicos”, como lembra o investigador Joaquim Fernandes num estudo que a ele dedica.
Graças ao capitão de um navio inglês, um tal Thomas Riddel, Loureiro teve acesso a vários livros de botânica, um deles do reputado naturalista Linnaeus, “fundamental para o reconhecimento e classificação das diferentes plantas”. Da sua colecção particular, João de Loureiro enviaria para a Inglaterra e a Suécia cerca de 60 amostras de espécies inéditas. Pouco tempo depois outra colecção – 230 plantas no total – seguiria o mesmo caminho.
Em 1779, o jesuíta viajou da Cochinchina até Cantão e aí viveu três anos. O regresso a Lisboa fá-lo-ia acompanhado do seu compêndio “Flora Cochinchinense”, obra que lhe granjearia reputação internacional. Antes disso, porém – como recorda Fernandes – “Loureiro fez uma escala de três meses em Moçambique, onde se dedicou aos estudos comparativos da flora local” com aquela que coleccionara durante a longa estada asiática.
Talvez como reacção à nada abonatória nota dos cientistas do Jardim Botânico de Kew, em Londres, autoridade maior nessa matéria, no início do século XX – concluíram os ditos que “provavelmente não há parte da África onde a flora esteja tão pouco investigada como na África Oriental Portuguesa” – o botânico português Luís Wittnich Carrisso, mentor e executor de três missões científicas às antigas colónias portuguesas, apresenta, em 1924, um relatório detalhado pedindo urgência nos trabalhos de exploração botânica nas então possessões ultramarinas portuguesas, “em particular na província de Moçambique”. E, para adiantar serviço, logo define “os procedimentos metodológicos e científicos” para concretizar tal empreendimento. Entre outras coisas, Carrisso propõe que “se as circunstâncias o indicarem, essas missões poderão ocupar-se de certas questões de interesse agrícola e industrial, como o estudo fito-geográfico de certas regiões, a fim de determinar a sua utilização agrícola: ensaio de culturas estranhas à flora da região; classificação de essências, com valor industrial de certas áreas florestais; etc.”, e ainda, “se as circunstâncias o aconselharem, o Jardim Botânico de Coimbra se encarregará da organização, um ponto da Província convenientemente escolhido com o carácter de jardim de ensaio”.
Curiosamente, e como chama a atenção o pesquisador Gomes e Sousa, “de toda a África Oriental, foi Moçambique a primeira região a ser estudada na sua flora, não por iniciativa da Metrópole, mas devido ao acaso da viagem do padre João de Loureiro [1717-1791], o qual, vindo da Cochinchina para Portugal, em 1783, desembarcou na ilha de Moçambique e ali permaneceu durante cerca de três meses”.
O compêndio “Flora Cochinchinense”, publicado em 1790 pela Academia de Ciências de Lisboa, incluiu espécimens da China, Índia, Sudeste Asiático e África Oriental. João de Loureiro apresenta e descreve “185 géneros novos e cerca de 1300 espécies, das quais 564 pertencem ao Património Natural da China e 697 no Vietname e no Sudeste Asiático e outras regiões e países como Zanzibar, Filipinas, Samatra, Madagáscar e da África tropical”.
Como seria de prever, este titânico trabalho de Loureiro provocou reacções entre os seus pares europeus e os elogios não tardaram a surgir. O alemão Karl Ludwig Willdenow, pioneiro fito-geógrafo, professor de Humboldt, publicaria “uma segunda edição do trabalho de Loureiro com pequenas mudanças e anotações”, três anos após a edição de Lisboa. Importante ainda o parecer do francês Antoine Laurent de Jussieu, ao provar a grande consideração “pelo trabalho do padre João de Loureiro num artigo publicado nos Anais do Museu da História Natural do Paris”, não esquecendo de louvar o zelo demonstrado pelo jesuíta ao longo das suas investigações.
Em 4 de Abril de 1781, a Academia de Ciências de Lisboa elegeu João de Loureiro como sócio e a Sociedade Real de Londres (da qual o jesuíta já era membro) integrou alguns dos seus trabalhos no clássico “Proceedings”. O presidente da Sociedade, Joseph Banks, ele próprio um botânico, com quem se correspondia Loureiro, revela nas suas cartas “a admiração para com esse seu amigo”, a quem pediu para que mudasse residência para Londres. Também o sueco Daniel Solander, naturalista da expedição do capitão James Cook, manteve contacto epistolar com o cientista português.
Além dos estudos impressos, restam vários manuscritos inéditos, “avaliados num estudo realizado por Bernardino António Gomes e que se traduzem em 12 grandes volumes e escritos em papel da China, contendo informações históricas; dois volumes com desenhos de minerais, plantas e animais e outros dois com 397 desenhos coloridos de plantas com seus nomes regionais e científicos; uma flora iconográfica da Cochinchina escrita em língua anamita; e um dicionário anamita-português”.
Considerado um dos mais importantes botânicos europeus do século XVIII, o padre João de Loureiro reúne consenso internacional como “o grande especialista em flora asiática”. A sua actividade científica – como já vimos – alargou-se aos campos da matemática, astronomia e da medicina. É uma das principais figuras da história da ciência portuguesa que requer urgentemente “um estudo bio-bibliográfico minimamente exaustivo para esclarecer o destino de sua propriedade literária e botânica, composta de espécimens, impressões e manuscritos científicos não publicados”.
Embora, do ponto de vista científico e no que diz respeito aos seus critérios e classificações, a “Flora Cochinchinense” possa ser considerada um “assunto datado”, é ainda aceite como trabalho de referência na história da etno-botânica e da farmacopeia mundial. Está por fazer um estudo mais detalhado e uma reimpressão necessária dessa obra, “um clássico português de literatura gerado pelas capacidades de uma das figuras esquecidas no inventário da História da Ciência”.
Parte dos espécimens colectados por João de Loureiro estão agora no Museu Nacional de História Natural em Paris, para onde foram levados, por Saint-Hilaire, em 1808, na sequência das invasões napoleónicas em Portugal.
Confirmando a importância do trabalho de Loureiro são as referências subsequentes em importantes estudos de Botânica, especialmente por Hance (1868) e Merrill (1935). E, apesar do obstáculo que constitui a sua escrita em Latim, a “Flora Cochinchinensis” superou o desafio do esquecimento. Na verdade, pesquisas como as de Hill e Stanberg (2009) ou Vaz (2010) continuam a sustentar-se nos estudos do missionário português. Além disso, o trabalho de João de Loureiro também forneceu uma fonte para a História da Ciência e da Literatura e da Cultura, permanecendo um marco, quanto à relevância do papel dos jesuítas no intercâmbio científico entre a Europa e o Oriente.
Acresce o facto de João de Loureiro ter sido o primeiro português a escrever uma nota sobre paleontologia, o primeiro do género em Portugal, justificando o epíteto específico do dinossauro “Draconyx loureiroi”.
Joaquim Magalhães de Castro
Comunicação apresentada no colóquio sobre as relações históricas entre Portugal e o Vietname, realizado na Universidade de Ciências de Hue, em Dezembro de 2017.