Situs Semedo e a menina Ribero
Conduzir nas estradas indonésias é um verdadeiro teste a todos os sentidos. Os veículos, sobretudo os biciclos motorizados, tanto nos aparecem pela esquerda como pela direita, aproveitando, todos eles, a mais ínfima nesga para se esgueirarem à menor desatenção do condutor oponente. Na verdade, é um milagre regressar incólume após uma jornada de várias centenas de quilómetros. Para compensar o caos, vá lá que as cidades indonésias têm a agradável particularidade de nos fazer sentir num ambiente quase rural, mesmo que segundos antes tenhamos saído de um horrendo congestionamento rodoviário – exemplo disso, as pequenas vielas laterais de telhado-toca-telhado com mulheres à soleira da porta de casa vendendo ao longo do dia o que confeccionaram de manhã bem cedo. É, aliás, devido a essa particularidade que raramente temos o privilégio de degustar pratos quentes. Em desvantagem, neste caso, os makam padang e os warung makan, por oposição aos volantes e práticos nasi e mee gorengs, e aos baksos.
A caminho de Semarang aparece-me, em jeito de intervalo, Tegal. Aqui surgiu a indústria colonial de açúcar por iniciativa da Companhia das Índias Orientais, servindo esta cidade costeira de porto de exportação da cana produzida nas plantações próximas. Avistadas de soslaio, a bonita sede dos caminhos-de-ferro e o alun-alun. Localizo no mapa entretanto um tal “Museum Situs Semedo”, algures nas redondezas. É, na verdade, mais de que um museu, sítio paleontológico onde foram encontrados aqui há uns anos uma série de fósseis. Motivo suficiente para dar nome também a um restaurante da zona, o “Makam Semedo”. Os locais desconhecem o significado da palavra, o que só reforça a hipótese de se tratar de um apelido português. Talvez o de algum mercador, soldado ou missionário que emprestaria o nome ao sítio. Como é que cá chegou é a questão a levantar.
Tegal, onde também se produz chá de boa qualidade, ter-se-á desenvolvido a partir de uma pequena aldeia chamada Tetegual; isto, em 1530. Ora, é para mim também bastante familiar, na sua sonoridade, este vocábulo. Uma meia centena de quilómetros adiante espera-nos Pekalongan, cidadezinha empenhada em produzir o melhor dos “batiks”, facto por si só justificador do museu dedicado a essa forma de arte têxtil tão querida dos indonésios.
Fundada em 1547, Semarang assenta num antigo porto mencionado por Tomé Pires na sua “Suma Oriental”. Denominava-a o português “terra de Camaran”. Hoje, o seu centro histórico, o Kota Lama – onde volto a encontrar riquexós a pedal – reúne um assinalável conjunto de edifícios coloniais que nos últimos anos têm vindo a ser alvo de merecidas obras de restauro. A paisagem urbana demonstra a transmutação de cidade fortificada – o baluarte De Vijfhoek, de cinco bastiões, na margem do rio Semarang, ergueu-o a V.O.C – em cidade portuária internacional e cosmopolita.
Demolida a muralha, em 1824, estabeleceriam no miolo urbano as suas sedes várias firmas estrangeiras privadas. Surgem assim os prédios de escritórios, os armazéns, as lojas, os bancos, os consulados estrangeiros. Desse período mantém-se intacto o edifício em tijoleira Marba, outrora armazém de venda de tudo e mais alguma coisa, percursor dos modernos supermercados. Uma ilustração de Frits van Bemmel, datada de 1930, retrata bem este modelo de lojas implementado pelo alemão Alfred Zikel e que depressa se espalharia pelas Índias Orientais. Noutro edifício recentemente recuperado destaco dois belos painéis de azulejos arte nova. Um deles representa uma mulher com a mão direita na cabeça de um leão e a esquerda pousada numa âncora – brasão de Semarang; o outro, um peixe e um crocodilo com cauda de escorpião – brasão de Surabaia. Também exemplarmente reabilitado o antigo armazém Spiegel, datado de 1775, é hoje estabelecimento comercial de sucesso e aí se podem degustar todas as modalidades de café. Subtraídas estas excepções, e umas quantas mais promessas de restauro em imóveis onde a arte-deco se funde no estilo colonial holandês, o que mais há são paredes degradadas com vidros partidos e plantas a despontar dos muros quais jardins suspensos à beira rio.
Após consulta cibernética descubro a existência de uma rua chamada (Jalan Peres) nas imediações do bairro de Bongsari para onde foi em tempos relocada a comunidade católica local. É prova disso, no cemitério contíguo à igreja de Santa Teresa, a lápide de um túmulo em razoável estado de conservação. Gravado no granito é visível um “Vasconcelos” bem português.
A introdução do Catolicismo na região ocorreu certamente algures no decorrer do século XVI, mas só seria “oficializado” em 1640, quando dois padres dominicanos, Manuel de Santa Maria e Pedro de São José, receberam um terreno do sultão de Mataram, Agung Adi Prabu Hanyakrakusuma, destinado aos católicos locais, no fundo, comerciantes portugueses de Jepara. Serão certamente descendentes dessa gente muitos dos actuais residentes de Bongsari e até algumas figuras públicas da cidade, como é o caso da muito jovem e promissora actriz Aurora Ribero, protagonista do êxito de bilheteira Susah Sinyal.
Joaquim Magalhães de Castro