Casada por procuração.
Vivia-se os anos 40, uma época em que Macau era ainda um pequeno burgo onde portugueses e chineses iam convivendo sem grandes problemas para benefício de todos. Anos que antecederam a Segunda Grande Guerra que, mais tarde, viria a moldar também o futuro do território e das gentes que ali conviviam.
Irene Leitão Ansejo Ribeiro viveu esse período na freguesia da Sé, onde nasceu. Residia no número 11 da Travessa do Mercado Municipal. Mais tarde foi viver para a Estrada de Cacilhas, onde cresceu amparada pela avó, pois ficara órfã muito cedo.
Iniciou os estudos no Colégio de Santa Rosa de Lima, que continuaram no Liceu Nacional Infante D. Henrique. Aos dezassete anos conheceu aquele que viria a ser o homem da sua vida. No entanto, a educação religiosa e os costumes da época não a deixavam – sequer – pensar em casar antes dos 21 anos. Acreditando sempre no seu grande amor, ambos foram esperando, até que um dia o futuro marido teve de deixar Macau e regressar a Portugal, devido a uma suposta emergência familiar – não sem antes jurar-lhe amor eterno e prometer que iria esperar que ela completasse 21 anos. O que à luz dos costumes actuais pode parecer inacreditável, aconteceu, e a 4 de Dezembro de 1961 Irene Ansejo casou por procuração na Cidade do Santo Nome de Deus. No dia 10 de Dezembro desse mesmo ano seguia viagem para Portugal a bordo do saudoso navio Timor. A viagem ficou na memória, visto ter coincidido com o conflito militar na então Índia Portuguesa. Com rota traçada para aportar nos territórios portugueses da Índia, o Timor teve de atracar em Singapura, obrigando todos os seus ocupantes a passar o fim-de-ano no mar.
Para Irene, uma jovem esposa que ia ao encontro do seu amado no “outro lado do mundo”, a travessia pareceu uma eternidade. Fê-la com grande sacrifício pois não gostava de andar de barco. Foram 70 dias de mar que culminaram com a chegada à capital do “Império”, numa época em que tudo ainda era muito retrógrado.
Com uma educação rígida, Irene não era jovem para chegar a casa depois do pôr-do-Sol, quanto mais andar acompanhada por um homem, na rua, à noite. A chegada a Lisboa, ao final do dia, e a caminhada para a pensão onde iriam ficar antes de rumar à cidade do Porto, fizeram com que se sentisse completamente deslocada. Ia olhando sempre por cima do ombro, pensando que alguém de Macau a visse de noite com um homem e fosse espalhar a notícia. A sua reputação, e mais importante ainda, a reputação da avó, seriam completamente destruídas. Foi preciso o marido lembrar-lhe que já era uma mulher casada e que ele, o homem, era o seu marido.
Passado o choque inicial, outros houve, a começar pelas regras de etiqueta que homens e mulheres tinham de seguir em Portugal. Deitou roupas para o lixo porque, se serviam para Macau, não eram adequadas para uma mulher casada em Portugal, e teve de alterar o seu comportamento que não encaixava com o Portugal dos anos sessenta, sendo mal aceite. A adaptação nos primeiros anos foi complicada, mas o amor que a ligava ao marido fez com que tudo se ultrapassasse.
Em Novembro de 1962 nasceu o primeiro filho (tem dois rebentos) e para complementar os rendimentos da família quis começar a trabalhar. O marido, que era mecânico, através de alguns dos seus clientes conseguiu que fosse aceite numa empresa como funcionária de escritório. O facto de falar diversas línguas e ser uma mulher muito desenvolta foi a receita para o sucesso. Passados alguns anos já estava envolvida em várias iniciativas que lhe granjearam bom nome e permitiu ter um bom rendimento por forma a proporcionar à família uma vida desafogada.
A vida adulta foi vivida na cidade do Porto, onde ficou a viver com o marido, que era natural de Freamunde.
Passados dez anos de ter chegado a Portugal, regressou a Macau em 1973, numa romagem de saudade organizada com o apoio do comendador Ho Hin, pai do ex-Chefe do Executivo, Edmund Ho.
No final dos anos setenta, depois dos filhos crescerem e deixarem de querer ir de férias para a Praia de Mira (onde a família passava o Verão), Irene e o marido começaram a visitar Macau anualmente. Regra geral iam em Fevereiro para fazer coincidir a visita com a festividade do Senhor dos Passos, de que Irene é devota. Uma das actividades em que participavam era a Novena do Senhor dos Passos. Este hábito durou três décadas.
Em 2009 voltaram a Macau em Março, porque o marido já estava debilitado. Sabendo ele o quanto era importante para Irene a deslocação anual a Macau, mesmo não indo em Fevereiro acabou por convencê-la a ir em Março. A 16 de Setembro do mesmo ano acabaria por falecer.
Desde então Irene visita a sua terra natal de três em três anos, fazendo coincidir a estadia com o Encontro das Comunidades Macaenses.
Do território que a viu nascer e crescer guarda saudades da comida e das suas gentes, e das casas pequenas e tradicionais de uma Macau que já não existe.
JOÃO SANTOS GOMES