Fé resistente
Situadas no extremo ocidental da mais oriental das nações asiáticas, as ilhas Goto são ainda hoje um mundo à parte dentro do Japão. Constituído por 63 ilhas, das quais apenas onze permanecem habitadas, o arquipélago foi um importante refúgio para os “kakure kirishitan”, os cristãos ocultos que durante mais de duzentos anos praticaram a sua fé em segredo para escapar à tortura e à morte.
Os primeiros a habitar em permanência no remoto arquipélago de Goto chegaram da cidade de Sotome, a cerca de quarenta quilómetros de Nagasaki. Durante décadas foram muitos os moradores da localidade que mantiveram uma vida dupla: praticavam a sua fé em segredo no aconchego e na segurança do lar enquanto se faziam passar em público por seguidores devotos das práticas xintoístas e budistas a que se entregava à época a esmagadora maioria da população nipónica.
Quinze por cento dos actuais moradores das Goto identificam-se como católicos e a maior parte são descendentes dos “kakure kirishitan”. Christal Whelan, antropóloga norte-americana que na década de noventa investigou de forma exaustiva as práticas religiosas dos descendentes dos cristãos ocultos no Sul do Japão, explica a sobrevivência do Catolicismo no arquipélago com a importância que os japoneses atribuem à ideia de identidade: «Trata-se, fundamentalmente, de uma questão de identidade, de transmitir às novas gerações de uma forma o mais fiel possível os ensinamentos que os seus antepassados julgavam mais significativos. A fidelidade à memória e aos valores dos antepassados continua a ser um aspecto que muitos japoneses valorizam. Este conceito tem significado diferente de pessoa para pessoa».
No documentário “Otaiya”, gravado parcialmente nas ilhas Goto, e no livro “The Beginning of Heaven and Earth”, Whelan aborda em específico a sobrevivência dos “hanare kirishitan”, os cripto-cristãos que se recusaram a abrir mão dos seus rituais quando a proibição que pairava sobre o Catolicismo foi levantada, em 1873.
O Cristianismo foi introduzido em Kagoshima, no sul da ilha meridional de Kyushu, em 1549 pela mão de São Francisco Xavier, mas não demorou a alastrar a outras regiões do Japão, sobretudo devido ao fervor e à entrega com que a missão de evangelizar o Japão a que o “apóstolo das Índias” se tinha proposto foi recebida.
A fé católica foi especialmente bem acolhida em Nagasaki, jurisdição administrativa à qual pertencem actualmente as ilhas Goto. No final do século XVI, e de acordo com algumas fontes históricas, o número de japoneses convertidos ao Catolicismo seria superior a trezentos mil apenas na região de Nagasaki.
O apoio à causa católica por parte de senhores feudais e a protecção do xógum Oda Nobunaga foi essencial para a expansão do Cristianismo e para a proliferação de templos católicos um pouco por todo o País. Em Nagasaki o número de Igrejas era tão substancial que os comerciantes começaram a apodar a cidade com a designação de “pequena Roma”, mas a boa nova de Cristo chegou também até à então capital imperial, Quioto, ou mesmo a Omi, em pleno coração do Japão.
O sucessor de Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi, permitiu inicialmente a presença dos missionários europeus em troca de embarcações e de tecnologia que pudessem favorecer os seus propósitos expansionistas, mas em 1587 – incomodado por uma religião que pregava o amor e a entrega a Deus acima de qualquer outro aspecto – ordenou a expulsão de todos os religiosos que operavam no País.
Ao édito seguiu-se uma vaga de perseguição cujos excessos ainda hoje são lembrados. Um dos episódios mais conhecidos da campanha persecutória iniciada por Hideyoshi ocorreu a 5 de Fevereiro de 1597, quando um grupo de 26 religiosos foi martirizado numa coluna de Nagasaki. Entre as vítimas estavam quatro missionários espanhóis, um português e um mexicano.
Situado numa outra colina de Nagasaki, o museu da Igreja de Oura – um dos doze monumentos relativos aos cristãos ocultos que em Junho do ano passado foram declarados Património Mundial – atesta as privações e o calvário a que os cristãos japoneses foram submetidos.
No auge da perseguição toda a população de Nagasaki foi obrigada a submeter-se ao “efumi”, um exercício que obrigava os suspeitos da prática do Catolicismo a pisar uma imagem da Virgem Maria ou de Jesus Cristo. Alguns crentes acediam à pressão das autoridades para não perder a vida. Os dados existentes não são inequívocos, mas os historiadores estimam que cinco mil 500 pessoas tenham sido mortas em Nagasaki por se recusarem a pisar a imagem de Cristo.
Após a rebelião de Shimabara e o assassinato do último missionário, em 1644, as autoridades japonesas assumiram que os cristãos tinham desaparecido, mas na região de Nagasaki os católicos continuaram a praticar a sua fé em segredo, escondendo as imagens a que prestavam devoção.
Remetidos à clandestinidade, os cristãos japoneses criaram estátuas em que a Virgem Maria se apresenta como Kannon, a representação budista da misericórdia, e esconderam cruzes e outras representações católicas no reverso dos altares de santuários xintoístas, como o de Tsuji, onde durante séculos foi venerada em segredo uma representação de “Inassho-sama”, Santo Inácio de Loyola.
O sincretismo é o aspecto que melhor define as crenças que os cristãos ocultos japoneses alimentaram durante dois séculos, uma religiosidade pouco ortodoxa e que só pode ser entendida à luz da cultura japonesa, alerta Christal Whelan. «Os kakure kirishitan perderam o contacto com os textos canónicos e começaram a fundir o seu próprio folclore com histórias que os seus antepassados escutaram da boca dos missionários, fossem elas lendas, fábulas ou relatos bíblicos», refere a antropóloga e antiga professora da Universidade de Kyoto, acrescentando: «Os relatos que integraram nas suas celebrações litúrgicas eram aqueles que apresentavam, de resto, uma maior afinidade com o sistema de valores que praticavam ou com a própria experiência que lhes advinha do meio social em que estavam integrados. É curioso notar que a paixão de Cristo para eles termina com a crucificação. Não há qualquer referência à ressurreição».
Uma boa parte dos cristãos ocultos estabeleceu-se em Urakami (um bairro de Nagasaki) e em Sotome, localidade situada a quarenta quilómetros da cidade. Foi, de resto, em Sotome, que tiveram origem os “kakure kirishitan” de Goto. Os cristãos ocultos acolheram com bons olhos um projecto de finais do século XVIII que visava o povoamento das remotas ilhas, entendendo que lhes oferecia a oportunidade de viver a sua fé em liberdade. O isolamento auto-imposto a que a comunidade se entregou permitiu, em grande medida, que as crenças dos cristãos ocultos japoneses tivessem sobrevivido quase intocadas até recentemente. «As comunidades que sobreviveram estavam à margem dos centros de decisão, habitavam áreas que ainda hoje são marginais tendo em conta a distância que as separa dos espaços de decisão política e cultural», defende Christal Whelan. «De certo modo não eram consideradas suficientemente significativas para serem perseguidas. Em algumas situações, como no caso de Ikitsuki, onde os “hanare kirishitan” estão envolvidos em actividades como a indústria baleeira, eliminar estas comunidades seria riscar do mapa toda uma indústria. Não é errado concluir que para as autoridades japonesas era mais útil fingir que estes cristãos não existiam», explica.
A proibição que durante dois séculos pairou sobre o Cristianismo só foi levantada em 1873, depois da reabertura do Japão ao mundo, país onde actualmente menos de um por cento da população se identifica como cristã.
Marco Carvalho