ILHAS DE SÃO LÁZARO – 35

ILHAS DE SÃO LÁZARO – 35

A ameaça holandesa

A chegada dos holandeses ao Sudeste Asiático e à Ásia Oriental obrigou os portugueses e espanhóis, até então mutuamente hostis, a pontuais colaborações, pois pela frente tinham agora um poderoso e determinado rival disposto a, literalmente, tirar-lhes o pão da boca, ou melhor dizendo, e neste caso, a tirar-lhe a especiaria do saco quando esta estava já bem arrecadada. A primeira tentativa desses “hereges” do Mar do Norte de se apoderarem da Cidade do Nome de Deus ocorreu a 27 de Outubro de 1601, felizmente sem qualquer resultado. Daí que cerca de dois anos depois, a 30 de Julho de 1603, estivessem de novo ao largo da foz do Rio das Pérolas, tendo desta feita capturado uma nau repleta de seda pronta a demandar o País do Sol Nascente.

A hostil conjuntura levaria ao reatamento das ligações marítimas entre Macau e Manila, entretanto interrompidas, “sendo registados”, como nos informa o historiador José Manuel Garcia, “nas duas primeiras décadas do século XVII as seguintes presenças de navios: em 1602, um; em 1604, cinco; em 1605, dois; em 1606, um; em 1609, um; em 1610, um; em 1612, sete; em 1619, dez; em 1620, cinco e em 1621, dois”. Esta nova realidade entusiasmaria os comerciantes portugueses ao ponto destes, em 1623, solicitarem junto do vice-rei D. Jerónimo de Azevedo a legalização de tão (mútua) vantajosa actividade, apesar dos tratos clandestinos em curso desde sempre tolerados. Argumentavam os burgueses de Macau que esse comércio “deixara de prejudicar a coroa, pois já não havia escassez de seda chinesa para abastecer os mercados, ainda que o facto principal que levou os portugueses de Macau a alterar as suas anteriores posições de fecho de relações face aos espanhóis resultasse fundamentalmente dos danos que sofriam com os ataques dos holandeses aos seus navios, sobretudo quando tentavam passar para o Índico”. Contrapunham ainda, e com razão, que caso fossem eles a conduzir o apetecível trato entre a China e Manila “haveria menos perigo dos produtos serem tomados pelos holandeses do que se fossem levados por navios chineses, como acontecia geralmente, pois estes eram mais facilmente roubados”. Além da seda, o mercúrio, “necessário à refinação da prata americana”, era um dos produtos levado pelos portugueses aos portos filipinos.

Fruto de um longo contacto, não tardou a sentir-se a lusa influência na cidade de Manila. Em 1606 era criada uma Misericórdia local, “caso único no império espanhol”, inspirada na congénere de Macau fundada em 1569, que por sua vez seguia o modelo da de Lisboa, que fora matriz de todas as misericórdias edificadas pelos portugueses no espaço geográfico que medeia Goa e Nagasáqui. Ciente do interesse comum, a cabeça duplamente coroada de Filipe II de Portugal, III de Espanha, incitaria os súbditos ibéricos a uma cooperação de forma a debelar os efeitos nefastos dos rebeldes protestantes, lembrando-os simultaneamente da continuada interdição do trato entre Macau e a América do Eldorado. Respondendo na mesma moeda, Azevedo, súbdito à força e vice-rei do Estado da Índia, voltava também a proibir a ida de castelhanos à China, pois mandara o rei, como evoca o cronista do Arquivo Português Oriental, “muitas provisões e instruções que com graves penas cesse o dito comércio e que cada ano se tire devassa daqueles que cometem aquela viagem”. Azevedo admitia ainda que essa proibição régia só seria viável quando “se fechasse o caminho para Manila” e que “o grande prejuízo do Estado da Índia não tinha origem no comércio entre a China e as Filipinas, mas sim no comércio da seda destas ilhas com o México e o Japão”. Para Azevedo o problema resolvia-se com a interdição do comércio entre as Filipinas e o México, obrigando os navios da União Ibérica a recorrer à rota do Cabo da Boa Esperança, “comunicando assim Manila com o Estado da Índia”, acção que, no entender do fidalgo português, ajudaria a repelir os holandeses do Índico.

José Manuel Garcia salienta o curioso facto de a “posição algo idêntica” ser partilhada pelas autoridades de Sevilha, “pois em 1610 pressionavam Filipe III de Espanha contra interesses de espanhóis do México, levando a que o rei enviasse uma carta em 1 de Dezembro desse ano ao marquês de Castelo Rodrigo, colocando-lhe a hipótese da viagem para as Filipinas passar a ser feita pela rota do Cabo da Boa Esperança, ainda que tal atitude não tivesse em conta os interesse do Estado da Índia”. A armada de seis caravelas comandada pelo português Rui Gonçalves de Sequeira, o único a encetar uma viagem “entre a Península Ibérica e as Filipinas pela rota do Cabo da Boa Esperança”, está em consonância com as ideias de Azevedo e dos maiorais de Sevilha. Quatro dessas caravelas chegaram a Manila em Agosto de 1614, seis meses depois de terem saído de Europa, ficando uma pelo Brasil e outra por Angola. Apesar das pontuais colaborações, continuaria tensa a relação entre os dois povos ibéricos, e disso se aproveitaria o comum inimigo holandês que contava com essa fraqueza para assentar arraial na região, como veio a acontecer.

Joaquim Magalhães de Castro

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