O Gama circum-navegador
Mal chegou João da Gama a Acapulco (Março de 1590) apreendidos foram o seu navio e toda a tripulação, cumprindo-se assim a legislação real. Os bens do capitão português, “avaliados em 140 mil pesos”, também lhe foram subtraídos e o seu processo judicial seguiu para a Casa de la Contratación em Sevilha, onde viria ser julgado. Aos restantes participantes na ousada expedição foi-lhes permitido o regresso a Macau, via Manila, após uma estadia no México onde puderam arrecadar uma boa quantidade de prata.
Ao pisar o solo ibérico, torna-se João da Gama no primeiro homem a completar uma volta ao mundo em sentido contrário ao da viagem dos sobreviventes da armada de Fernão de Magalhães. Partira para Macau via rota do Cabo da Boa Esperança e cumprira o regresso à Europa recorrendo à transpacífica rota castelhana. Lá longe, no Oriente, reprovavam-lhe a desobediência e a ousadia os senadores de Macau ao expressarem o seu desconforto contra tal personagem numa carta do governador Manuel de Sousa Coutinho datada de 3 de Abril de 1589. Era Gama “acusado de ter vendido a viagem ao Japão a que tinha direito e de ter mandado uma nau sua à Nova Espanha, carregada de fazendas que eram destinadas à Índia”, como especifica o investigador José Manuel Garcia. Face ao sucedido, Coutinho envia “o licenciado Rui Machado para pôr termo a estas ilegalidades e fazer embarcar para a Índia todos os castelhanos que encontrasse em Macau, denunciando mais uma vez os prejuízos causados pela navegação castelhana à China”.
Na verdade, os portugueses de Macau continuavam a hostilizar os espanhóis, como o demonstra o embargo feito a um navio espanhol que ali demandou em 1590. Por seu lado, os vizinhos ibérico não desistiam da pretensão de comerciar com Macau, e, por arrasto, com a China, fazendo petições enviadas a quem de direito, mas sem qualquer sucesso. A falta de “cumprimento das determinações régias” está, aliás, bem patente na correspondência entre o monarca dual e os seus representantes no Oriente. Ora nesse mesmo ano de 1598 as infracções às ordens do rei por parte dos espanhóis deram origem a um acto que se revestiria de maior gravidade; o qual consistiu na realização de comércio na China pelo capitão dom Juan Zamudio, que para lá se deslocou numa fragata enviada pelo próprio governador das Filipinas, sob a alegação que os dois reinos tinham o mesmo rei. Este navio dirigiu-se a Cantão e mediante o pagamento de grandes quantias os espanhóis foram autorizados pelos chineses a fazer comércio no designado “porto do Pinhal”, mas com a condição de não desembarcarem e não voltarem lá.
Os investigadores Jin Guo Ping e Wu Zhiliang remetem-nos para a Guangdong Tongzhi (Crónica Geral de Guangdong) da autoria de Jin Guangzhu: “No 5º dia da 8ª lua do 26º ano (24 de Julho de 1598) do Reinado de Wanli (1573-1615), gentes de Lução vieram de repente para ancorarem em Haojing’ao (Baía de Vieira, Macau), solicitando a apresentação de tributos. O governador de Guangdong considerando ilegal a sua entrada, decidiu expulsá-las. Os portugueses de Macau reforçaram também a sua defesa, impedindo o desembarque dos luções. Na 9ª lua (Setembro), transferiram-se para Hutiaomen (Porta de Saltos de Tigre), dizendo estar à espera que os seus barcos fossem medidos. Na 10ª lua (Setembro-Outubro), mandaram dizer que tinham chegado a Jiazimen (Porta do Ciclo Sexsagesimal). Avariados os barcos, ficaram a residir em Hutiaomen, sem intenção de se retirar. O Haidao Zhang Banghan enviou para lá tropas, tendo queimado a sua povoação. Na 9ª lua (Julho-Agosto) do ano seguinte (1599), é que regressaram para o mar leste. Há quem diga que vieram aliciados pelos comerciantes de Guangdong e Fujian”. Segundo Jin Guo Ping e Wu Zhiliang o local chamado de Pinhal situa-se numa das desembocaduras do Xijiang (Rio de Oeste), situada a cerca de doze milhas de Macau. Como lembra José Manuel Garcia, “os portugueses sob o comando de Paulo de Portugal fizeram nessa altura múltiplas diligências junto das autoridades chinesas e dos espanhóis para que estes abandonassem aquele local, o que só fizeram em 1599, depois da ocorrência de um confronto em Macau”.
A rivalidade entre portugueses e espanhóis no Oriente insere-se num ambiente marcado pela liberdade de iniciativa sintetizada na expressão “grande soltura”, como era revelado pelo facto de que “tinham assentado fazer naquele ano viagem dali para Manila contra as proibições e defesas de vossa majestade” e até em certos momentos pela agressão a autoridades judiciais quando em Macau tentaram cumprir as ordens para impedir o comércio com as Filipinas e julgar os infractores.
Em 1620 veremos surgir uma poderosa aliança entre a Holanda e a Inglaterra contra os rivais Portugal e a Espanha. Estes, pela força das circunstâncias, viam-se obrigados a cooperar. Exemplo disso é a viagem de Diogo Vaz Bávaro a Manila num pataxo, em 1621. Entre “outros bens para Macau”, Bávaro adquiriu “seis peças de artilharia, pagando por cada uma duas mil patacas”. Terá sido este material de guerra, juntamente com um pequeno destacamento espanhol das Filipinas então presente em Macau, factor decisivo no bom sucesso da defesa da cidade após a investida holandesa de 24 de Junho de 1622. A propósito escreve José Manuel Garcia: “O referido fornecimento de armas terá sido excepcional, pois em geral era de Macau que seguiam para Manila peças de artilharia e munições. Segundo o testemunho de Lourenço de Liz Velho o comércio com Manila realizado em 1621 rendeu a Macau 60 000 cruzados em fretes”.
Joaquim Magalhães de Castro