O “mineiro” Diogo de Carvalho
Nascido em Coimbra em 1578, Diogo de Carvalho tornou-se jesuíta aos dezasseis anos de idade e desde muito cedo sentiu germinar em si o desejo de partir para o Oriente, onde chegaria a Macau, em 1600, para estudar Filosofia e Teologia, e ser ordenado sacerdote. Nove anos volvidos estava no Japão, em Amakusa, ilha de Kyushu, diligentemente aprendendo a língua japonesa e exercendo o seu ministério. Tudo mudará, no entanto, com o decreto assinado em Janeiro de 1614 pelo xogum Tokugawa Ieyasu, ordenando a expulsão de todos os missionários estrangeiros e proibindo o Cristianismo.
Ieyasu deixara-se levar pelo intriguismo interesseiro dos comerciantes holandeses – incutiram-lhe a ideia que os missionários eram, na realidade, a vanguarda de um suposto plano de “conquista do Japão pelos portugueses” –, livrando-se assim dos seus concorrentes comerciais.
Carvalho foi dos últimos estrangeiros a deixar o Japão rumo a Macau, de onde, já em 1615, seguiria na companhia de Francesco Buzomi até à Cochinchina, para aí fundar a primeira missão jesuíta. Regressa clandestinamente ao Sul do Japão em 1617 e viaja até Sendai onde acompanhará Jerónimo de Angelis nas campanhas de evangelização. Junto das incipientes cristandades atende em confissão os recém-convertidos e instruí-os, celebrando sempre que pode a Eucaristia, alimentando-os com “o pão dos fortes”. No seguinte trecho de uma das suas cartas está bem patente o seu ânimo evangelizador: “Partindo de Oxu para o Reino de Deva, fui direito à cidade de Cabota e ali comecei, com grande segredo, a confessar os cristãos que vinham, pouco a pouco, ter comigo, e juntamente tratei do modo que teria [possível] para visitar os cristãos desterrados que estão em Tugara. Ao terceiro dia, veio ter comigo um cristão meu conhecido. Logo entendi que Deus mo mandava para me levar a Yezo. E, porque a embarcação estava a pique e eu tinha ainda muita gente que confessar em Cabota, conclui em três ou quatro dias o que havia de fazer em dez ou doze, confessando de dia e de noite, passando as noites sem dormir, porque mudava o lugar na mesma noite, por serem os concursos perigosos, em tal tempo”.
Concluídas as confissões, Carvalho fez-se à vela disfarçado de mineiro porque, como ele próprio diz, “os que passam a Yezo, ou são mercadores ou mineiros”. Informa ainda que durante a travessia todos o trataram com amabilidade, sem nunca o identificarem como estrangeiro. As horas canónicas, rezava-as pela manhã cedo “com a primeira luz, quando todos ainda dormiam, metendo a cabeça e o breviário debaixo do cobertor e deixando entrar alguma pouca luz”.
Chegado a Matsumae, recolheu-se logo “em casa de um nosso cristão antigo”. Não nos refere o seu nome, embora garanta que foi grande “a alegria com que todos me receberam”. A 5 de Agosto, “dia de Nossa Senhora das Neves”, Diogo de Carvalho celebra uma série de eucaristias, como o próprio afirma, “as primeiras missas que em Yezo se disseram”. E, a respeito disso, comenta: “parece que se dignará esta Senhora de tomar debaixo da sua protecção aquele reino”. Estávamos em 1620, e dois anos depois retornava Carvalho àquela ilha, tendo relatado, essa e a anterior jornada, no manuscrito “Terra de Yezo” enviado aos seus superiores.
Como Angelis, Carvalho menciona as viagens de barco, “de mais de 60 dias”, que asseguravam o mercado local com peles de lontras do mar mas também “falcões vivos e penas de águia que os japoneses usavam para decorar as suas flechas”, referindo ainda as sedas de muito boa qualidade trazidas pelos yezojin do Norte, “após 70 dias de travessia marítima”.
Os ainus adoravam o Sol e a Lua, embora não houvesse nessa atitude qualquer preocupação espiritual, tão só uma necessidade de sobrevivência: empiricamente sabiam que sem esses astros impossível seria a vida na Terra. A idolatria bem expressa no culto aos kami (espíritos) japoneses não os seduzia. Era gente selvagem e corajosa dada a combates, mas cessavam, se preciso fosse, todas as hostilidades e passavam a viver em paz com o seu vizinho. Ao encontrarem-se no campo de batalha as hostes rivais trocavam cumprimentos e pediam antecipadamente desculpa pela refrega prestes a iniciar-se. Bebiam como odres, sem contudo jamais se embriagarem, denotando assim grande capacidade de resistência ao álcool. Em batalha ignoravam os ferimentos e só mais tarde é que os tratavam, com água e sal. Fisicamente eram baixos de estatura (ainda assim mais altos do que os japoneses) e o cabelo chegava-lhes às ancas; metade da cabeça estava rapada e na outra o cabelo crescia livremente. Eram grandes cavaleiros, e gente simples, “mas não estúpida, antes pelo contrário: são extremamente inteligentes”. Vestiam túnicas “como as dos mouros”, sentavam-se sobre os joelhos e comiam com pauzinhos, “como os japoneses”. No que se refere a possibilidade de conversão, Carvalho mostra-se esperançoso, pois naquela sociedade não havia monges, as pessoas não sabiam ler nem escrever e não eram “avaros e gananciosos como os chineses”. Prova disso, a abundância na região de minas de ouro as quais ninguém se dava ao trabalho de escavar.
Joaquim Magalhães de Castro