Ginés de Mafra, piloto e cronista
Ruy López de Villalobos viu-se forçado a abandonar os seus intentos, rumando às Malucas onde se confrontaria com os portugueses. Perdeu, foi encarcerado (na ilha de Amboíno) e no cárcere morreu, a 4 de Abril de 1544. Entre os sobreviventes da sua equipa de 177 tripulantes que arribaram a Malaca constava o circum-navegador Ginés de Mafra, como o apelido indicia, de possível origem portuguesa (embora se apresente como castelhano) e autor de um manuscrito referente à extraordinária viagem de Fernão de Magalhães, em que participara, e que se manteve inédito até ao século XX. Falemos, pois, um pouco deste personagem.
Ginés de Mafra, recolhido pelos portugueses da maltratada nau Trinidad arribada a Ternate, conheceu os calabouços de Banda, Malaca e o exílio de dois anos em Cochim, antes de seguir para Lisboa, agora sim, oficialmente como prisioneiro, agrilhoado a sete chaves no Limoeiro, de onde, graças aos esforços das autoridades castelhanas, mormente pedidos pessoais do imperador Carlos V, o conseguiriam resgatar, no início de 1527.
Roía-lhe, porém, o bichinho da aventura e bem cedo temos Ginés de Mafra de novo no mar, desta feita apontado às Américas. Ali chega em 1531 e de imediato se coloca ao serviço do governador da Guatemala. Pedro de Alvarado sabia bem do valor do piloto, dos mais cotados da época, e teve a oportunidade de comprovar essa reputação durante os dez anos que o manteve ao seu serviço. Vemos, por isso, com toda a naturalidade, Mafra juntar-se à expedição de Villalobos, pois essa era a empresa mais ambiciosa da época e o capitão espanhol estava bem ciente da mais valia do piloto, conhecedor dos mares onde nos próximos meses navegariam. Dir-se-ia que Mafra partiu para o Novo Mundo de modo a não perder a oportunidade de regressar à Insulíndia.
Senhor do leme do galeão San Juan de Letran, Ginés de Mafra, juntamente com quatro centenas de homens do mar, deixou a barra da Navidad, Jalisco, México, em Novembro de 1542. Continua por explicar a razão pela qual o vamos encontrar a pilotar a San Cristóbal, a nau capitânea da armada de Villalobos, que em 1543 entrou no porto filipino de Mazaua. É bem possível que ao longo da viagem – em cuja derrota foram descobertas as Ilhas dos Corais, entre outras – se tenha mudado para a nau-capitânea, por ser marítimo mais capaz. Separara-se o galeão da restante frota, entre 6 e 23 de Janeiro de 1543, devido a uma brava borrasca. Foi junto aos atóis de Eniwetok e Ulithi, nas ilhas Carolinas, obrigando os espanhóis a nelas buscar refúgio. Mafra verteu aí para o pergaminho as memórias da sua anterior viagem com Magalhães. Facto curioso! Anos antes, estanciara nessas mesmas ilhas um grupo de portugueses, e desde então passaram a ser designadas como “Ilhas de Sequeira” nas cartas de marear, como vimos numa crónica anterior. Mafra descreve assim o Rajá Siaiu, o régulo de Mazaua: “Vimos este chefe [Rajah Siaiu] todos nós os da frota de Ruy López de Villalobos, e ele ainda se lembrava de Magalhães, e mostrou-nos algumas objectos que ele [Magalhães] lhe havia oferecido”.
De acordo com o relato de Pigafetta, “o presente de Magalhães consistia em uma peça de roupa vermelha e amarela feita à moda turca, um gorro vermelho, facas e espelhos”. Mafra e demais membros da tripulação permaneceram na ilha cerca de cinco ou seis meses, o tempo necessário para reparar a San Cristóbal, fortemente danificada pela intempérie.
Ginés de Mafra seria um dos sobreviventes da fracassada expedição de Villalobos que chegou a Malaca. Mafra parecia viver um “déjà-vu”. Passara por tudo aquilo, há 22 anos. Só que desta vez tinha 53 anos e não o chocou ter sido sacrificado (ele e outros 29) a ficar desterrado no Oriente. A um dos companheiros que num navio português seguiu para Lisboa, confiou o seu manuscrito. Como de Lisboa chegou este a Espanha, já em forma impressa, graças a um editor desconhecido, é insondável mistério. Como tantos outros, quedou-se tão valioso documento, séculos esquecido, no Arquivo das Índias, em Madrid. Acabaria por ser descoberto em 1920 e nesse mesmo ano publicado sob o título “Libro que trata del descubrimiento del estrecho de Magallanes”. Munidos das informações fornecidas por Ginés de Mafra, uma equipa de arqueólogos tentou validar a teoria de Mazaua como local da primeira da chegada, em detrimento da oficializada ilha de Limasawa, esforço premiado com a constatação, em Janeiro de 2001, de que a região de Pinamanculan e Bancasi, a norte da actual cidade de Butuan, porto de Mindanau, constituía outrora uma ilha. Empenharam-se os arqueólogos em tentar encontrar artefactos que identificassem essa ilha como “o porto de Magalhães”, tendo sido desenterradas ossadas humanas, algum ferro corroído, pulseiras de metal e um pilão de latão.
Joaquim Magalhães de Castro