O recado de António de Almeida
A semente estava lançada; e o Pacífico atravessavam agora aqueles que dela iriam colher o fruto. O expedicionário Ruy López de Villalobos, que chega às Filipinas em 1543, irá testemunhar a acção de Francisco de Castro, um legado religioso mas também político, pois tinham sido no processo firmadas alianças entre os portugueses das Malucas e alguns régulos locais, e estes mantinham-se fiéis a elas como comprova a seguinte descrição do “Tratado dos Descobrimentos” de António Galvão: “Neste mesmo ano de 1543, o primeiro de Fevereiro, houve Ruy Lopez vista daquela nobre ilha de Mindanao, em nove graus de altura. Não pode dobrá-la nem surgir, como desejava, porque os reis cristãos e o povo dela lho defenderam, por terem dado obediência a António Galvão, que eles muito estimavam, e não queriam anojá-lo cinco ou seis reis que tinham tomado água do baptismo”.
Villalobos seguiria mais para sul onde pela força tomou a pequena ilha de Sarangani, pondo-lhe o nome de “Antonio” em honra do vice-rei de Nova Espanha, Antonio de Mendoza. E nesse mesmo ano, mandou Bernardo de la Torre dar conhecimento destas ilhas que doravante passariam a ser designadas como Filipinas em honra do príncipe Filipe I de Espanha. Só que entretanto, de 1523 a 1543, tinham tentado os portugueses implantar-se naquela região, traçando novas rotas, identificando povos e costumes, produtos a ser comercializados; estabelecendo sempre que possível alianças políticas e espaços para novas missões, isto décadas antes de qualquer tentativa de fixação da presença colonial espanhola nas agora ilhas das Filipinas. Esses esforços lusos prolongar-se-iam até cerca de 1568.
À viagem de Francisco de Castro seguem-se, em 1543, as praticamente desconhecidas navegações de António de Almeida e Belchior Fernandes, que agora deparavam com a concorrência dos espanhóis naquelas águas, e cujas missões mereceram a atenção dos historiadores Gaspar Correia, Gabriel Rebelo e Diogo do Couto. O primeiro deles abordou a viagem de Almeida a Mindanau (embora não mencione a de Belchior) motivada precisamente pela presença dos espanhóis no arquipélago; “e porque estas gentes eram nossos amigos os não queriam consentir na terra e pelejaram com eles; do que se foram queixar a Maluco a Dom Jorge de Castro que lá era capitão”, tendo este mandado um mensageiro (o nosso Almeida) a pedir-lhes explicações, pois, como deveriam saber os ibéricos vizinhos, encontravam-se “em terras del-rei de Portugal”, transgredindo um acordo previamente estabelecido. Colocavam os nossos a hipótese de, por fortuita tempestade ou erro de navegação, terem-se extraviado os rivais ibéricos. E, se preciso, dispunham-se a oferecer a ajuda que pudessem, pois, afinal de contas, os espanhóis “eram vassalos do imperador, íntimo amigo e irmão del-rei de Portugal”, e a entregar salvos-condutos para que a “gente daquela terra” os tratasse bem e lhe desse tudo o que necessitassem. Foram-lhes, contudo, lembrando, caso fosse sua intenção fazer ali o trato, tal não lhes permitiria o capitão Almeida pois, como português, “todas aquela ilhas estavam sob o seu mando e obrigação”.
Ripostaram os castelhanos, afirmando que nada temiam pois o território onde se encontravam “era da demarcação do imperador; e separada e mui alheia das ilhas do cravo, que era Maluco, onde ele não tocaria, porque em tuda guardaria o seu regimento”. Isto, dito de forma educada e devidamente assinado no documento que Almeida levaria ao capitão-mor português estacionado na pequeníssima mas crucial ilha de Ternate, verdadeiro âmago no comércio das especiarias. Decorreu o encontro com a maior das civilidades e em muito bom tom, mas a verdade é que os espanhóis não se intimidaram, e no onde estavam aí permaneceram.
Gabriel Rebelo, conhecedor daqueles mares, esclarece que António de Almeida, “filho bastardo do contador-mor”, viajou em duas coracoras, prova de que os portugueses ali estabelecidos recorriam sobretudo a embarcações de fabrico local. Informa-nos, por sua vez, Diogo do Couto das necessidades dos castelhanos que não se coibiram em comer todo o tipo de alimentos, “onde entravam cousas imundas e nojentas, como cães, gatos, ratos, cobras, lagartos e outras cousas semelhantes”, e refere a mútua entrega de reféns, como prova de boa vontade, enquanto decorreram as conversações, pois apesar da diplomacia os receios eram mútuos. António Galvão realça a enorme surpresa dos espanhóis face ao nosso poder de adaptação, pois vestiam e comportavam-se os portugueses ao modo local, sinal de um contacto já com vários anos: “Os seus foram muito espantados de verem os nossos tão longe e por tão diferentes caminhos e pelo conseguinte do trajo, porque daquele tempo era de pouca pluma; que, de pé até ao joelho, levariam descobertos, e assim convinha ao uso das embarcações”. Também Rebelo nos fala desse espanto; e de um outro, o de verem os rivais ibéricos embarcados em coracoras, “como do trajo daquele bárbaro tempo, e daquele encontro tão remoto do seu e nosso natural”.
Joaquim Magalhães de Castro