E com pedra de Ançã foi edificada
Desde meados dos anos 90 do século passado que a Vila de Ançã deixou de estar na rota de quem na zona bairradina se deslocava a Coimbra. Lembro-me, em criança e adolescente, que quando tinha de ir a Coimbra passava pelo centro da histórica vila e observava a sua altiva igreja matriz – um templo que não se pode considerar de grandes dimensões, mas que tem uma importância enorme para a vila e para a região.
A Vila de Ançã é conhecida em todo o Portugal e além fronteiras pela pedra utilizada em várias construções, especialmente pela usada em muitos monumentos e edifícios religiosos.
O calcário de Ançã foi empregue na arquitectura e na escultura, tanto em Portugal como no estrangeiro. Prova disso é a sua utilização no portal do Hospital Real de Santiago de Compostela e em diversas esculturas flamengas.
Segundo documentação do Museu da Pedra a exportação fazia-se por via marítima, transportando-se a pedra em carros de bois até à Quinta do Rol, sendo depois embarcada em barcaças que percorriam a Vala de Ançã até ao Rio Mondego para chegar ao porto da Figueira da Foz. Aí era carregada em navios que a levavam até ao seu destino.
No mesmo museu é ainda possível ficar a saber por que razão a pedra de Ançã é tão conhecida e uma das preferidas dos artesãos.
A abundância e qualidade desta pedra sempre atraiu a Coimbra grandes escultores que ali produziram obras notáveis da estatuária religiosa e tumular portuguesa. Entre estes está o Mestre Pero, que esculpiu o túmulo da Rainha Santa Isabel, para além de várias Nossas Senhoras do Ó, entre as quais as actualmente existentes em Corunha e Santiago de Compostela. Também podemos referir Gil Eanes, autor do portal do Mosteiro da Batalha, e Nicolau de Chanterene, autor dos túmulos de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I e do portal da igreja de Santa Cruz em Coimbra.
Actualmente, a partir de blocos de calcário extraídos das pedreiras, prepara-se, artesanalmente, pedra de cantaria, lintéis de portas e janelas, guias de passeios, degraus de escadarias, colunas, corrimões, pias, altares e também esculturas. Os referidos blocos são também utilizados em fundações de edifícios, paredes, passadeiras e no fabrico de cal. Como não é de estranhar, a igreja matriz da vila foi construída com recurso à grande quantidade de pedra que abunda nas serranias circundantes.
A igreja de Nossa Senhora do Ó, que fica mesmo junto da estrada por onde todos passavam rumo a Coimbra, possui uma fachada de grande imponência, datada de 1812, e rica em termos arquitectónicos e paisagísticos. Os arcos que encimam a entrada nas capelas laterais são de grande beleza arquitectónica e decorativa, mas o que mais sobressai é o retábulo principal todo feito em pedra de Ançã, que no Século XVII era ainda muito raro.
Com a abertura da circular exterior de Cantanhede e da via rápida que dá acesso a Coimbra, a Vila de Ançã passou a ficar numa posição secundária.
Quando a viagem se fazia, forçosamente, pela vila, era da praxe ali parar, fosse na ida ou no regresso, para comer, comprar e levar os famosos bolos de Ançã. Esta parte da viagem é das que me trazem mais memórias. Normalmente era no regresso que parávamos para comprar dois ou três bolos de Ançã. Claro está que um dos bolos nem sequer chegava a casa, pois eram bem mais saborosos enquanto quentinhos e não conseguíamos resistir. Os restantes eram comidos no dia seguinte, ao pequeno-almoço antes de irmos para a escola. Comíamo-los frios ou como mais gosto: aquecidos no calor do borralho e depois barrados com manteiga, a acompanhar o leite da manhã em dias de frio e chuva.
Dos primeiros anos da igreja matriz pouco se sabe. No entanto, está documentado que por volta de 1783 terá ardido, tendo sido posteriormente reconstruída por ordem do bispo D. Francisco de Lemos, em 1789.
Na capela-mor encontram-se duas esculturas de pedra de Ançã, da segunda metade do Século XVI, representando São Pedro e São Paulo. A frontaria está dividida em três partes, na vertical, por meio de pilastras. No interior, a igreja tem três naves, separadas por duas arcadas dóricas, de cinco arcos cada, como explica uma das descrições colocadas à entrada do templo. O coro ocupa o primeiro tramo e é sustentado com três arcos frontais. Como já dissemos, o interior tem três naves que datam do Século XVII, sendo que os arcos foram renovados em 1812. Nesta ocasião, levantaram-se as paredes laterais e abriram-se frestas.
A capela-mor tem uma abóbada pétrea, em painéis, e a capela lateral da esquerda uma cúpula de tipo renascentista. A da direita é dedicada ao Senhor das Misericórdias.
É com pena que hoje em dia se deixe de ver esta igreja sempre que nos deslocamos a Coimbra. Ainda há pouco tempo, numa dessas deslocações, fizemos questão de sair da rota e passámos pelo centro da Vila de Ançã para visitar a igreja.
Felizes por constatarmos que a vila respira agora muito mais tranquilidade, acabámos parar também no regresso para comprar os famosos bolos de Ançã. Infelizmente, desta vez, não chegaram a casa!
João Santos Gomes