Estão os valores reféns dos extremistas?
O assunto pode parecer fracturante no seio dos católicos, não porque os possa dividir, mas porque toca em matérias sensíveis, fazendo-os questionar o seu próprio posicionamento face à Igreja Católica e aos temas que estão na ordem do dia de todas as sociedades, independentemente do seu quadrante político e geográfico.
Não é de agora que a Igreja Católica é encarada como sendo tradicionalista, ortodoxa e, por vezes, reaccionária. Os últimos escritos sobre o Papa Pio XII são disso exemplo, pois permanecem vivas duas teorias opostas: a primeira acusa Eugenio Pacelli de ter colaborado com o Nazismo, a segunda defende que a acção do então Sumo Pontífice contribuiu para salvar do holocausto centenas de milhares de vidas.
Outro exemplo são as biografias sobre a Santa Madre Teresa de Calcutá que tendem a relacionar a fundadora da Congregação das Missionárias da Caridade com alguns regimes totalitários, quando na realidade a diplomacia da “irmã dos últimos” foi determinante para tirar da miséria milhares de crianças e suas famílias, para além de ter fomentado novas vocações entre os mais jovens.
Até o mais iletrado ou menos informado dos fiéis sabe que a Igreja Católica é liderada a partir do Vaticano, sendo este um Estado independente, reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e que goza de todos os direitos que esta entidade e inúmeros tratados internacionais lhe atribuem.
Se para os católicos o Papa é o seu líder espiritual, para qualquer chefe de Estado – independentemente da sua confissão religiosa – Francisco é a figura máxima de um país (cidade-Estado ou principado, como o quisermos designar), com responsabilidades amplamente reconhecidas pela comunidade internacional. Daí que não se possa exigir a um membro da Igreja Católica – desde o Papa aos bispos, passando pelo padre ou irmã que se encontram no canto mais recôndito do planeta – que proceda para lá do que é hoje politicamente e diplomaticamente aceitável, num mundo cada vez mais global. Claro está que as atrocidades (mesmo que meramente verbais) devem ser veemente denunciadas, cabendo aos Estados actuar em conformidade com a gravidade das situações, não deixando no entanto de assegurar os seus interesses nacionais.
Posto isto, se nos planos político e diplomático não há praticamente muito mais a esmiuçar – a “realpolitik” tudo explica – já no plano dos valores há um oceano de interrogações difíceis de responder e de questões por resolver. E é aqui que está a grande diferença entre a Igreja Católica e as outras denominações cristãs, talvez com a ligeira excepção da Igreja Anglicana.
Enquanto os protestantes e os evangelistas “respondem” perante líderes espirituais (pastores e bispos) organizados em entidades supranacionais, apenas reconhecidas entre elas; os ortodoxos estão limitados à “jurisdição” religiosa e territorial do seu respectivo Patriarca; e os anglicanos estão subordinados ao monarca inglês, servindo na maioria das vezes como braço político da rainha de Inglaterra como garante da inviolabilidade do Reino Unido; já a sede (Santa Sé) da Igreja Católica está no Vaticano, um país soberano e independente, que goza os direitos e cumpre as obrigações que o Direito Internacional estipula.
Esta breve exposição vem a propósito das recentes eleições no Brasil e da ascensão de forças políticas de extrema-direita ou nacionalistas um pouco por todo o mundo.
Nas últimas cinco décadas a proliferação do movimento “New Age”, associado ao comunismo anti-religioso (numa primeira fase), e pouco depois absorvido pelo Liberalismo nas suas mais diversas vertentes (numa segunda fase), descalibrou os pratos da balança dos valores, da ética e da moral, constituindo hoje as sociedades uma manta de retalhos anárquica em que prevalece o “sim”, o “pró”, o “deixa andar”, a liberdade sem responsabilidade, a ausência de regras, enfim, a velha máxima do “proibido proibir”. O resultado tem sido o agravar do fosso das desigualdades, o aparecimento de novos guetos sociais e a incapacidade dos Estados de garantirem a segurança dos cidadãos.
Neste quadro, temas como o aborto, a eutanásia e a ideologia de género vão sendo tratados com superficialidade, preferindo os decisores políticos tudo permitir, ao invés de cuidarem e protegerem quem neles votou, lavando as mãos como Pôncio Pilatos. Esta acção negligente levou à abolição das aulas de Religião e Moral; a pouca educação cívica leccionada nas escolas está politizada, seguindo os ditames do laicismo e do secularismo; não há políticas de apoio à natalidade e o conceito de “indivíduo” sobrepôs-se aos conceitos de “família” e “colectivo”.
Não é pois difícil encontrar nos discursos mais extremados posições semelhantes ao da Igreja Católica, o que não deixa de ser uma dor de cabeça para a maioria dos católicos, principalmente quando questionados por não-crentes. Uns procuram encontrar resposta nos últimos dois mil anos da História da Humanidade, havendo um período em que no mundo ocidental a Igreja esteve durante séculos acima dos Estados, impondo-lhes os seus princípios. Outros baseiam-se nos próprios princípios, que para os católicos devem ser invioláveis. Lembremos, por exemplo, que não há muitas semanas até o Partido Comunista Português votou juntamente com os partidos de direita com assento na Assembleia da República contra a morte medicamente assistida.
O facto é que o neoliberalismo vigente, depois de ter corroído as sociedades, está a auto-corroer-se, sendo urgente uma nova Ordem Mundial. Se o ressurgir de lideranças musculadas é a solução, ninguém sabe. Mas uma coisa é certa: venham os decisores da Extrema-esquerda, da Esquerda, do Centro, da Direita ou da Extrema-direita, a Igreja Católica nunca deixará de defender os princípios que considera fundamentais para a salvação da Humanidade, sejam eles adoptados por quem forem.
E porque falámos em diplomacia, deixamos mais uma certeza: enquanto Estado, o Vaticano também jamais se irá colocar à margem do xadrez político internacional. É que só através da conjugação Igreja-Estado e Igreja-Religião é que os valores que sempre regeram a Humanidade poderão continuar a prevalecer. Está provado que dividir estes conceitos é como retirar a vela de um barco. É navegar à deriva, sem rumo, ao sabor das mares.
José Miguel Encarnação
jme888@gmail.com