O ataque a Hugli
Os argumentos do renegado Martim de Melo surtiram efeito e o “poeta” Shaista Khan num instante se transmutou em feroz guerreiro. Tratou logo de colocar à frente do combate o seu filho Ibrahim Khan (nos textos portugueses Inaiatulá Cã), arregimentador de uma tropa de 150 mil homens, munidos de artilharia e embarcações fluviais. Atente-se ao farto número! Se é certo que, atendendo aos exageros líricos da época, devemos manter reservas em relação a números sempre que se trata de disparidade de forças num campo de batalha, o presente caso – ousamos dizê-lo – traduz bem do temor provocado pelos portugueses junto dos seus inimigos, e quiçá, da própria fraqueza do exército mogol. A 26 de Junho o mesmo encontrava-se apenas a três milhas da cidade, facto causador de enorme comoção junto da lusa comunidade, apanhada de surpresa.
Ao cair da noite estavam já barricadas as ruas, distribuídos os mosquetes a quem os sabia e podia manejar, tendo assumido o comando das operações um tal Manuel de Azevedo, que trataria de nomear uma série de capitães para o ajudarem nos preparativos da defesa. Mas antes do confronto, valia a pena a negociação. Nada estava garantido. Nada se perdia. Recairia sobre o nosso padre João Cabral a difícil tarefa. Ao encontrar-se com o general mogol queixou-se este do apoio que a cidade estaria a prestar aos caçadores de escravos de Dianga, e, sobretudo, relembrou o padre da crescente suspeita do envolvimento das gentes de Hugli no caso da desaparecida nobre mogol. Cabral refutou as acusações, considerando-as infundadas, garantindo poder provar o que dizia. Se podia provar – retorquia o mogol – então que o autorizasse a fazer uma busca à cidade. Se ali fossem encontrados bengalas raptados demonstrado ficaria o ilícito. Ora, em Hugli, havia na verdade muita dessa gente. Antigos escravos comprados aos piratas locais, os denominados “mag”, e aos alevantados portugueses. Só que entretanto todas essas pessoas tinham sido convertidas à fé cristã e, de certa forma alforriadas, pois à sombra da Igreja se abrigavam. A lógica era: como cristãos não podiam ser abandonados. Convém não esquecer que os referidos bengalas, uma vez “libertados”, passariam a servir os ocupantes mogóis, que em termos culturais e étnicos nada tinham a ver com aquela região, pois ligavam-nos à Pérsia e à Mongólia as suas raízes.
Cabral apressou-se a transmitir o recado às autoridades de Hugli, que de novo o incumbiriam de ir falar com o generalíssimo mogol, desta feita com o recado-recusa quanto à desejada busca mogol. O filho de Shaista Khan teria de confiar na palavra dada. Mas este, falhadas as negociações, procedeu à investida a 2 de Julho, logo ao amanhecer, que é quando por norma se iniciam as mortandades. Fê-lo em duas frentes: por terra e por via fluvial. Os arredores de Hugli cedo cairiam em seu poder mas o núcleo citadino, bem entrincheirado, resistiria. Informa Cabral na sua carta que do lado inimigo se perderam seiscentos homens e “do nosso apenas morreram seis portugueses e quinze indianos”. E, em jeito de conclusão desse primeiro dia de um cerco que se iria estender ao longo de um mês, acrescentou: “Os mouros ficaram grandemente desanimados com as perdas. Alguns deles insistiram com Inaiatulá para desistir da empresa”, pois se os portugueses levassem a melhor, “toda a Bengala, ou pelo menos todas as regiões adjacentes se juntariam a eles”.
Apesar desta primeira derrota, os mogóis insistiram na investida, agora com redobrada cautela. O plano entretanto urdido implicava novas negociações. Estavam dispostos a oferecer aos sitiados uma honrosa capitulação. Acreditando na boa-fé dos muçulmanos, apresentar-se-ia como mediador o prior do mosteiro dos agostinhos, que os mogóis ignorariam exigindo a presença de “gente de maior estatura”. Assim se fez, e os negociadores seguintes foram quatro capitães. Mal entraram na tenda do inimigo, Babur Khan, capitão das tropas mogóis, repetiu o pedido que fizera a João Cabral: queria todos os escravos presentes na cidade. Sensatamente, os portugueses entregaram-lhes cerca de noventa, mas o mogóis não se deram por satisfeitos, e, de chacota, exclamaram: “Mandem também as mulheres negras, os hábeis cozinheiros, as bailarinas, os pasteleiros, as costureiras, etc…”. Bom, está de se ver o que na realidade pretendiam os proclamados libertadores… Face à recusa dos portugueses, os mogóis, certamente numa tentativa de ganhar tempo, solicitaram pessoas de maior calibre para continuar a negociação. E é aí que vemos de novo em acção o nosso padre Cabral, integrado no lote dos seis religiosos (entre os quais o mencionado prior agostinho) encarregados da tarefa. Mas os mogóis tinham aumentado a parada. Exigiam agora aos habitantes de Hugli que lhes entregassem metade dos seus bens e todo o numerário. Ora, uma proposta dessas soava mais a rendição do que a justo entendimento. Por isso, pediram licença para se retirar, só que os não deixaram e, como explicita Cabral, “todos nós fomos postos e a ferros”. Para os assustar os mogóis trouxeram um elefante – um daqueles animais utilizados nas execuções de criminosos, treinados para pisotear os corpos das vítimas depois de as levantarem com a tromba e agitarem bem agitados. Não podia ser mais aterrador o cenário.
De entre os prisioneiros, seria Cabral o feliz contemplado para “levar a carta à Garcia”, neste caso, a Manuel de Azevedo. Ou incondicionalmente se rendiam os residentes de Hugli, entregando todas as suas riquezas, ou então os elefantes tratavam dos cativos. Face a tal ultimato restava aos portugueses lutar até ao limite, muito embora do outro lado os aguardasse um contingente de milhares de homens e 120 canhões. Foi mês e meio de esforço bélico mogol, em vão. No processo ficaria reduzido a cinzas o mosteiro dos agostinhos e saqueada a Casa do Jesuítas. O centro da cidade, embora sujeito aos constantes bombardeamentos e explosão de minas, estoicamente foi resistindo.
Joaquim Magalhães de Castro