ICONOCLASTIA COMO ARMA DE ARREMESSO

ICONOCLASTIA COMO ARMA DE ARREMESSO

A cobardia dos novos vândalos

O que temos vindo a assistir nestas últimas semanas, à boleia de um cruel assassinato e do efeito imitação do-que-vem-lá-de-fora-é-que-é-bom, não é novo, mas está a atingir proporções que nos devem preocupar seriamente. A cartilha e o “modus operandi” são exactamente os mesmos, aqui ou do outro lado do Atlântico. Nem sei dizer se o pior dessa canalha desmiolada é a sua profunda ignorância quanto a questões históricas, se as múltiplas contradições de que padecem – contestam o sistema capitalista mas andam todos bem artilhados com roupa de marca, que recorre a mão-de-obra escrava como bem sabemos, e telemóveis da última geração cujos componentes são obtidos com trabalho infantil, uma das formas mais vis da exploração do homem pelo homem, utilizando a linguagem de que tanto gostam. Mas isso importa pouco a esses “heróis” de pacotilha que só sabem bater em mortos.

A irracionalidade é tal que entre as suas “vítimas” não constam apenas o negreiro Colston, o navegador Colombo ou o estadista Churchill, mas também insuspeita gente como Lincoln ou Matthias Baldwin, inventor da locomotiva a vapor e abolicionista de gema. Em Portugal, depois da ameaça velada à integridade do Infante, lá em Lagos, calhou a fava ao pobre do padre António Vieira, ali à mão de semear – nada como umas boas pichagens depois de uma noite de copos e ganzaria, não é ó malta? E de nada valeu ao António – filósofo, escritor, orador, missionário, ilustre figura do século XVII – ser neto de uma mulata e intransigente defensor de índios e judeus, atraindo sobre ele, por isso, o faro dos mastins do Santo Ofício. Hoje são outros os Torquemadas, disfarçados sob a capa de certas ONG enquanto de forma banal fomentam o ódio entre brancos e pretos, como se não fosse o mundo uma paleta de cores com um sem número de matizes.

A semana passada foi o padre Vieira, mas podia muito bem ter sido outro qualquer. O alvo é o nosso passado comum. Querem vê-lo reduzido a bruma, irrisória poeira, e incutir em todos nós irracionais complexos de culpa… Esta doentia febre iconoclasta de querer fazer contas com o passado é a prova provada da cobardia e incapacidade (ou desinteresse) de lidar com os problemas do mundo actual e de os enfrentar como gente grande, para ajudar a resolvê-los. Tantas causas para combater: a assustadora presença em África dos facínoras do ISIS e quejandos – veja-se o que se passa em Moçambique, cujos gritos de ajuda caem em saco roto; bem pode limpar as mãos à parede essa inutilidade chamada CPLP… –, a mutilação genital feminina, os leilões de escravos, etc., etc., e esses meninos mimados que não têm cara para levar um estalo a levantar a poeira do passado armados em juízes da História. Curiosamente, os supostos cérebros desse movimento (!?) não se demarcam publicamente das arruaças, e quando dão sinais de vida é para nos dizer que se tratam de provocações da extrema-direita. Como? Por favor, poupem a minha inteligência. Se não houvesse precedentes até era capaz de colocar essa hipótese… Entretanto retóricas várias tentam justificar o injustificável dizendo-nos que não é justo comparar o que está a acontecer nos Estados Unidos e um pouco pela Europa com aquilo que fizeram os talibãs no Afeganistão ou o Estado Islâmico em toda a antiga Mesopotâmia. Ora, eu acho que essa súcia é o equivalente no Ocidente às mencionadas asiáticas hordas trogloditas.

Fico estarrecido ao ouvir certas pessoas cultas e civilizadas defender o derrube de estátuas, sejam elas quais forem, se bem que a esmagadora maioria das pessoas têm vindo a reprovar com veemência essa actividade terrorista, valha-nos isso. Quem não concorda com a presença de uma determinada estátua e acha que ela deve ser removida do espaço público e confinada às quatro paredes de um museu, então, só tem de recorrer aos meios que uma sociedade livre e democrática lhe coloca à disposição. Que escreva um artigo num jornal, faça um abaixo-assinado, uma manifestação pacífica, uma greve de fome, sei lá, mas em momento algum – com o megafone, o martelo ou o silêncio comprometedor – parta para a destruição, pois perderá de imediato a razão.

Face à actual barbárie – e isto é particularmente grave – reina um silêncio sepulcral nas instituições académicas e o poder político, acobardado, temendo a turbamulta, começou já a recolher e a empacotar os Hamiltons (Nova Zelândia) e os Baden Powells (Inglaterra). Pessoalmente, temo pelo futuro de muitos dos nossos símbolos espalhados pela África, pelas Américas, e até pela Ásia, na eventualidade do fogo vir a alastrar-se. Caso não seja travada a loucura poderá ir tudo a eito. Se aprecio os indivíduos habitualmente imortalizados nesse tipo de estatuária? Sinceramente, não, a maioria não aprecio; mesmo nada. Muitos deles foram, é verdade, uns grandessíssimos sacanas, mas defenderei sempre o direito de ficarem onde estão. Exigindo – e isso é fundamental – que sejam acompanhados de detalhada informação, em vários idiomas, para que todos se inteirem dos seus actos, louváveis ou reprováveis, isso pouco interessa. Teremos então praças e jardins públicos transformados em museus e salas de aulas; uns e outros locais de instrução gratuita. Talvez assim, conscientes, de tudo aquilo que deverá ou não voltar a acontecer, nos possamos tornar melhores pessoas. Quem não sabe conviver com o seu passado, louvando-lhe as virtudes e apontando-lhe os defeitos, não tem futuro.

O filme do que aí vem é fácil de visionar. Começaram (e estamos a falar de planos concertados) pela linguagem, com aquilo que pode ou não ser dito, e agora estão na fase das estátuas. Seguir-se-á a destruição dos monumentos, a incineração dos livros, a censura dos filmes, e depois… Depois, “tudo o vento levará”.

Joaquim Magalhães de Castro

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