Restrições não abalam a fé
Na primeira pessoa, podia dizer: nas minhas duas cidades, reina o São João! No Porto, onde nasci, em Macau, terra do coração, São João (Baptista) é o santo da maior festa de cunho cristão. Mas se em Macau é o padroeiro, no Porto, ao contrário do que se pensa, não é. Apesar do seu destaque na cidade, ser o santo mais celebrado da Invicta e ser um feriado municipal, o patrocínio recai sobre Nossa Senhora da Vandoma.
Mas falemos antes um pouco do santo. É curioso que, além da Virgem Maria, João Baptista é o único santo de quem a Liturgia celebra o nascimento terreno, não o nascimento para o Céu (a morte na Terra). João, o “Precursor” de Jesus, é por demais importante na História da Salvação. Filho de Zacarias e de Isabel, a sua vida é entendida como um dom de Deus aos seus progenitores, já de provecta idade e sem possibilidade de terem filhos. É a figura que surge na transição do Antigo para o Novo Testamento, como Precursor de Jesus, sendo um profeta de ambos os Testamentos. Depois, graças a Lucas e ao seu Evangelho, onde se narra uma complementaridade entre as infâncias de Jesus e de João Baptista, a Liturgia celebra até hoje o nascimento de ambos numa correspondência astronómica, com Jesus no Solstício de Inverno e João no Solstício de Verão.
São João Baptista terá nascido na Judeia, no ano 2 a.C., tendo morrido em 30 d.C. Era filho de Zacarias, um sacerdote judaico, e de Isabel, prima de Maria. A João se deve o baptismo, primeiro símbolo da conversão de gentios, depois, no Cristianismo, rito que torna o baptizado como filho de Deus Pai, membro da Santa Igreja de Cristo e apto para o caminho da salvação. João, com efeito, baptizou Jesus no Rio Jordão, reconhecendo o primo como o verdadeiro Messias. Eremita, embrenhou-se no deserto, como pregador da rectidão e das virtudes. Não estava fora do mundo, conhecendo as vicissitudes do mesmo. Assim, terá censurado Herodes Antipas por ter cometido adultério com a sua cunhada, Herodíade, acusação que lhe valeu a prisão e a decapitação, a pedido de Salomé, sobrinha do rei e filha de Herodíade. Se muitos põem a causa a sua historicidade, recorde-se que o historiador judeu-romano Flávio Josefo o refere nas suas Antiguidades Judaicas. Além disso, várias religiões o recordam, como o Judaísmo e o Islão. Neste último, é considerado como um profeta, nabi, sendo conhecido como Nabi Yaḥyā ibn Zakarīyā, ou seja, “João, filho de Zacarias”. Foi mesmo um dos profetas que Maomé conheceu na sua noite do Mi’raj, a noite de ascensão aos Sete Céus.
O São João é festejado a 24 de Junho, mas a festa começa no dia anterior. Festa rija não apenas no Porto, mas também em Alcácer do Sal, Almada, Angra do Heroísmo, Braga e Tavira, por exemplo. E em Macau. Mas já lá vamos. É a noite mais da Invicta, onde se tornou parte da sua identidade, mobilizando centenas de milhar de pessoas por toda a cidade e arredores, entre autóctones e turistas, nacionais e estrangeiros. A origem da festa é, porém, pagã, de celebração do Solstício de Verão e da fertilidade, assim como as colheitas e a abundância que levavam os pagãos a celebrar. A Igreja, tal como fez com outras festas pagãs (Carnaval, por exemplo), cristianizou a festa (provavelmente ainda antes do Século XIV, em que já se festejava), personalizando-a na figura de São João (o Baptista, no caso, embora possa ter sido outro João…). Os mouros que viviam em Portugal celebravam também o Santo, o que lhe confere antiguidade, atestada por Fernão Lopes. No Porto, a festa tornou-se cada vez mais rija e foliona. Alhos-porros, ramos de cidreira, ou limonete, martelos de plástico em vez do alho-porro, e balões de ar quente a encher a ruidosa noite de São João, são algumas das tradições, a par das fogueiras para saltar, menos em voga hoje, ao contrário dos manjericos com uma pequena bandeira espetada (com versos populares). As cascatas sanjoaninas, quais presépios animados, ainda subsistem nos bairros populares. E depois vem o fogo-de-artifício da meia-noite, além dos bailes, farturas, festas por toda a cidade, com vinho, caldo-verde, boroa e carnes grelhadas.
E em Macau? Desde 1622 que São João Baptista é o Padroeiro da Cidade, instituído pelo Leal Senado para lembrar a vitória sobre os holandeses, como agradecimento pela glória dos portugueses sobre estes, aquando da sua invasão. Obrigado, São João, por Macau e pela festa, pela virtude e pela coragem, pela tenacidade e simplicidade.
Vítor Teixeira
Universidade Fernando Pessoa