A história da igreja de Nossa Senhora das Dores está, indissoluvelmente, ligada aos leprosos que viveram em Ká-Hó e ao padre Gaetano Nicosia, SDB, erguendo-se na encosta da colina de Ká-Hó, na ilha de Coloane.
Construída em 1966, durante o bispado de D. Paulo José Tavares e com o apoio do Papa Paulo VI, do Governo de Macau e da diocese de Macau, teve como finalidade servir as necessidades religiosas da vila de Ká-Hó, onde, naquela época, viviam as famílias de leprosos curados e alguns novos doentes com essa terrível enfermidade. Daí que a igreja tenha sido dedicada a Nossa Senhora das Dores, a protectora dos doentes.
A igreja de Nossa Senhora das Dores foi a primeira projectada em Macau de acordo com os novos conceitos de arquitectura religiosa introduzidos após o Concílio Vaticano II (1961-1965), pelo que o seu espaço interior reflecte as modificações da liturgia implementadas durante o referido Concílio, estando concebida como um grande salão, com o altar-mor posicionado ao centro da Assembleia e voltado para os fiéis, como um anfiteatro, estabelecendo uma relação mais próxima entre estes e o sacerdote.
Tem a forma de uma grande tenda e, por desejo do padre Nicosia, dispõe de treze portas que simbolizam Jesus Cristo e os seus Doze Apóstolos. A concepção, num estilo modernista, foi do engenheiro e escultor italiano Francisco Messima, tendo tido, ainda, a contribuição de Leopoldo Goffedo Acconci, outro escultor italiano; a construção ficou a cargo do empreiteiro Oseo Acconci.
Como já se referiu antes, o altar não está colocado ao fundo da igreja, mas num dos lados para que se tivessem sete portas de um lado e seis do outro. É, por isso, conhecida como a “igreja de portas ímpares”. Por sua vez, a cobertura é composta por oito conjuntos de vigas na diagonal que, além da função estrutural, dividem simbolicamente a igreja em sete secções, evocando as “Sete Dores de Nossa Senhora das Dores”. No exterior da porta norte há um magnífico crucifico de bronze, da autoria de Francisco Messima, que também concebeu o sino de bronze da igreja.
A construção da igreja revelou-se um autêntico desafio logístico! Na realidade, os materiais tiveram de ser transportados de barco para Coloane, pois não havia vias terrestres que fizessem a ligação com a península de Macau e, para além disso, a zona da igreja foi separada da vila, pois os trabalhadores, muitos dos quais ficaram a viver em Ká-Hó durante a construção, tinham receio que os leprosos se aproximassem.
A igreja está classificada pelo Governo de Macau como “edifício de interesse arquitectónico”.
PADRE GAETANO NICOSIA, SDB
O padre Nicosia nasceu a 3 de Abril de 1915, em San Giovanni la Punta (Catania – Sicília), em Itália. Com vinte anos de idade rumou para o Oriente, tendo-se estabelecido em Hong Kong, onde iniciou a sua missão religiosa a 11 de Novembro de 1935.
Serviu na Saint Louis School, em Hong Kong, durante onze anos e, em 1946, foi ordenado sacerdote na igreja do Seminário de São José, em Macau, integrando-se na Sociedade de São Francisco de Sales (Salesianos). Começou a pregar na China, mas queria que a sua missão fosse entre os mais pobres, incluindo os leprosos, conforme tinha prometido a Jesus Cristo quando era jovem.
O seu superior salesiano pretendia então enviá-lo para uma leprosaria na Colômbia, quando o bispo de Macau pediu ajuda para a colónia de leprosos na ilha de Coloane. No ano de 1958 mudou-se definitivamente para Macau, tendo vivido na povoação de Ká-Hó, em Coloane, entre 1963 e 2011 (48 anos). Sob proposta do mesmo, o local da leprosaria passou a designar-se “Vila de Nossa Senhora”.
Quando chegou à colónia dos leprosos em Ká-Hó, o padre Nicosia deparou-se com uma situação catastrófica. Devido à grave enfermidade de que padeciam e ao abandono quase total de que eram alvo, a taxa de suicídio entre os leprosos era elevada, não havia água potável nem electricidade, a higiene era praticamente inexistente, só de tempos a tempos recebiam a visita de um médico e os alimentos eram poucos.
Então, o padre Nicosia desenvolveu todos os esforços no sentido de melhorar as condições de vida dos leprosos de Ká-Hó e, graças ao seu longo e contínuo trabalho junto dos leprosos durante 48 anos, o padre Nicosia conseguiu que muitos destes tivessem recuperado e fossem reintegrados na sociedade, apesar do estigma social associada à doença, tendo ficado conhecido como “Anjo dos leprosos”.
Desenvolveu, ainda, outros projectos relevantes, entre os quais a construção de um hospital em Macau para as pessoas com deficiências físicas e a escola católica D. Luis Versiglia, em Ká-Hó, no ano de 1984. Pelo trabalho em prol dos mais necessitados, nomeadamente dos leprosos e dos refugiados vietnamitas na década de 70, o padre Nicosia recebeu condecorações do Presidente de Itália e do Governo de Macau, com a Medalha de Mérito Altruístico.
Regressou a Hong Kong em 2011, onde ficou na St. Mary’s Home (Aberdeen), tendo falecido no dia 6 de Novembro de 2017, com a idade de 102 anos. O seu corpo foi transladado para Macau, onde foi sepultado, a 14 de Novembro desse ano, após as cerimónias fúnebres na Sé Catedral.
LEPROSARIA DE KÁ-HÓ
Em Macau, os leprosos estavam acolhidos num hospício no bairro de São Lázaro, mandado construir pelo bispo D. Belchior Carneiro, em meados do Século XVI, sendo financiado pela Santa Casa da Misericórdia de Macau.
Já nos finais do Século XIX, com vista à expansão da cidade de Macau, fez-se uma separação dos leprosos, tendo os homens sido levados para um “depósito de leprosos”, em Pac Sá Lan, na ilha de São João (hoje, ilha da Montanha ou Hengqin), ficando, inicialmente, em habitações muito frágeis que foram destruídas por um tufão em 1883. Foram, entretanto, construídas casas mais sólidas para os acolher. Apesar do estigma da lepra, tal não foi impedimento para que os doentes fossem alvo frequente de ataques de piratas que lhes roubavam os seus parcos pertences, como arroz e moedas.
Em 1885, as mulheres com lepra foram colocadas nas cinco casas que integravam o hospício de Ká-Hó. Não foi um processo simples nem pacífico, tendo as autoridades alterado os planos por diversas vezes, na medida em que os locais escolhidos, quer na ilha da Taipa quer na península de Macau (perto das Portas do Cerco), eram rejeitados pelas populações desses lugares.
Mesmo as autoridades portuguesas da época referiam-se à lepra como “aquela repugnante enfermidade” e, em nome da higiene pública, a assistência médica directa aos leprosos era muito limitada. Na década de 1930, o médico apenas visitava Ká-Hó uma vez por semana e ainda menos frequentes eram as visitas médicas a Pac Sá Lan. O tratamento das feridas causadas pela lepra era deixado nas mãos dos doentes mais inteligentes e educados, tendo chegado a equacionar-se a construção de um edifício na península de Macau para o tratamento de alguns dos pacientes, mas tal nunca aconteceu.
No ano de 1929, o Governo deu início à expansão da leprosaria de Ká-Hó. Os novos edifícios, incluindo cinco pavilhões e uma capela desenhados num estilo arquitectónico eclético, foram concluídos em 1930, definindo um arruamento na encosta virada para o mar. Os pavilhões eram caracterizados por amplas varandas cobertas, de inspiração clássica, que se abriam sobre a paisagem.
A nova leprosaria tinha capacidade para noventa pacientes e recebia visitas semanais das equipas médicas, bem como a assistência de organizações religiosas, entre as quais as Irmãs de Caridade Canossianas que aqui se instalaram para prestar cuidados aos doentes, assim como aos habitantes da vila de Ká-Hó.
No ano de 1950, os homens com lepra que estavam em Pac Sá Lan foram igualmente levados para Ká-Hó, na medida que havia a intenção de se proceder à ampliação da vila na ilha de São João, mas tal não ocorreu, pois o construtor da obra também contraiu lepra e desapareceu para nunca mais ser visto. Aos casais não lhes era permitida a coabitação, mas, como é evidente, os membros dos casais trocavam correspondência entre eles.
A comunidade leprosa cultivava vegetais, sendo, assim, autónoma. Recebia também comida vinda de Macau que era deixada numa pequena praia localizada na zona. Tirando essas viagens esporádicas, não eram visitados por mais ninguém, sendo os leprosos tratados como animais e acorrentados por medo do contágio.
Na leprosaria de Ká-Hó viviam cerca de cem leprosos, abandonados à sua sorte e a necessitar urgentemente de cuidados médicos. A situação só se alterou com a chegada a Macau do padre Nicosia em 1958. Este, com uma dedicação sem limites, nunca se recusou a tratar dos enfermos, apesar do alto risco de contágio. A partir daí, os leprosos passaram a receber assistência médica mais frequente e a vila ficou, lentamente, livre da lepra.
Em 2011, todos os habitantes da colónia dos leprosos foram declarados curados e muitos deles regressaram ao trabalho como professores, trabalhadores ou exercendo a actividade como profissionais independentes.
N.d.R.: Texto oferecido a’O CLARIM por um católico de Macau