Traquina e diferente
Filomena Zuleima Cascais é a irmã mais velha dos três irmãos Cascais. Anteriormente falámos com Luís Cascais, no encontro que se realizou na Mealhada. Desta vez, no encontro que marcou o Festival das Lanternas, conhecemos Zuleima e passámos uns momentos agradáveis a desfiar a sua vida e ligação a Macau. Laços que à semelhança do irmão nunca mais esqueceu, apesar de ter deixado o território em tenra idade.
Nasceu a 9 de Fevereiro de 1940 e veio para Portugal depois de terminar o Ensino Primário na antiga colónia portuguesa. «Foi em Outubro de 1952, com doze anos», recorda Zuleima com alguma nostalgia. Um choque enorme para a mãe, de quem apenas guarda memórias de uma «grande senhora», mas também para ela e para os dois irmãos mais novos. O choque da passagem de uma comunidade em Macau, que para a época era já mais desenvolvida do que a dos anos cinquenta em Portugal, para uma comunidade de aldeia no interior norte do País.
O Ensino Primário foi todo feito no Colégio de Santa Rosa de Lima desde os três anos de idade, de onde guarda recordações que muito estima e que muito a alegram passados todos estes anos. Lembra que fôra uma boa aluna mas – confessa – muito traquina. «As patifarias que fazia ultrapassavam as marcas», diz com um sorriso na cara. Mas como era boa aluna, quase tudo lhe era perdoado… tudo!?, ou quase tudo, porque com a alcunha de “macaca”, ganha no grupo de amigas que passavam o tempo a subir às árvores no recinto da escola, fazia com que a madre Arminda perdesse a paciência e a levasse à madre superiora do colégio.
Lembra ainda que quando não tinha aulas adorava andar de patins com as amigas ou jogar à ronda (um jogo parecido com o basebol em que se usava raquetes em vez de tacos). Era uma presença assídua no cinema e é com saudade que fala de “O Feiticeiro de Oz” e “Um Lugar ao Sol”, duas das películas que mais a marcaram no início da juventude.
Natural da freguesia de São Lourenço, Zuleima Cascais adorava brincar nas redondezas e ia todos os dias de cule, num riquexó, para a esquadra onde o pai era chefe para fazer os trabalhos de casa. Depois das tarefas escolares terminadas, tinha autorização para brincar num terreno que o pai ali tinha perto e que era mantido por um criado que se encarregava das papaeiras. Aliás, a imagem do terreno repleto de papaiais, fruta que ainda hoje adora, não lhe sai da cabeça. Assim como ainda se recorda do casal inglês que vivia numa vivenda ao lado do terreno, junto da estrada que dá acesso à Penha. «A esquadra onde trabalhava o pai ficava nessa zona», perto de uma residência da família Lobo.
A saída definitiva de Macau, muito devida aos problemas de saúde do pai, que se dava muito mal com o clima quente e húmido, foi atribulada. No entanto, Zuleima relembra que apesar de ter apenas doze anos tem noção de que havia tensões entre Portugal e a China. Não sabe precisar qual seria a razão da crispação nesse período, mas tem presente que de tempos a tempos ouviam-se tiros, e de noite era possível ver rasgos de fogo por cima dos telhados, dos tiros vindos do lado da China. Ao certo não sabe qual era a razão da tensão, mas acredita que também tenha pesado na decisão apressada dos pais, na altura já com três rebentos, de deixarem o território e rumarem a Portugal. A verdade é que deixaram Macau tão à pressa, tão rápido, que a mãe sempre se queixou que não teve tempo de preparar a viagem convenientemente.
A mudança para Portugal, para uma menina que vestia calças e vestidos com alças, nos anos cinquenta, não foi muito fácil, apesar de acreditar que para os seus irmãos tenha sido ainda mais complicado. Ela, sendo a mais velha, ia todos os dias de manhã para um colégio privado em Moncorvo, ficando assim mais protegida dos olhares críticos da sociedade da aldeia de Larinho. Já os irmãos não tiveram tanta sorte e foram, por diversas vezes, alvo de chacota e crítica por parte das outras crianças na aldeia por parecerem “diferentes”.
No final do Ensino Secundário – o antigo sétimo – acabou por fazer uma pausa de um ano. Entretanto, com o agravamento da saúde do pai, Zuleima viu-se obrigada a deixar de lado o sonho de juventude de ingressar num curso de línguas. Para tentar aliviar os encargos da família decidiu enveredar pelo magistério primário, tendo leccionado durante meia-dúzia de anos. Após ter pedido a exoneração do cargo, voltou aos estudos e licenciou-se em Educação Física, profissão que exerceu até se aposentar. Passou pelos ensinos público e privado, uma carreira com vinte e três anos que terminou por vontade própria e da qual guarda bonitas memórias.
Macau, segundo nos explicou, nunca esteve nos planos. Nos tempos de estudante não era possível devido às dificuldades financeiras. Eram três a estudar num colégio privado nos últimos anos de vida do pai. Quando começou a trabalhar, tendo apenas um mês de férias, não era o suficiente para visitar a terra natal como merece ser visitada. «Ir a Macau para passar meia-dúzia de dias não vale a pena», diz Zuleima com a voz embargada pela emoção.
Após a precoce morte do pai, a Mãe ainda ponderou regressar, mas vendo os filhos com as vidas a serem reconstruídas em Portugal, com as suas amizades e estudos, foi sempre adiando o regresso. Depois, quando os filhos já estavam “encaminhados”, foi a vez da mãe adoecer e do regresso ser adiado mais uma vez.
São uma família muito unida, hábito que tanto o pai como a mãe sempre cultivaram e que ainda hoje Zuleima considera ser a razão de estar tão próxima dos irmãos. Tal relacionamento passou também para os netos e sobrinhos. Enquanto a mãe foi viva, todos os fins-de-semana a família se reunia.
João Santos Gomes