A paixão pela Heráldica.
Residente em Macau ao longo de vários anos, Fernando Jorge Fialho enveredou pela heráldica quando regressou a Portugal, ainda antes da transição de soberania do território de Macau para China. O CLARIM foi ouvi-lo para tentar perceber algo sobre esta forma de arte praticamente desconhecida do grande público.
O CLARIM – Trace, por favor, um breve perfil sobre si. Onde nasceu, estudou, viveu, e qual a sua actividade presente.
Fernando Jorge Fialho – Nasci em Lisboa mas apenas com meses de existência fui para uma aldeia no Baixo-Alentejo. Ali aprendi a ver o mar nas searas e tanto mais pela mão da avó materna. Aos cinco anos vou para a Foz do Douro, no Porto, onde entre outras coisas aprendi que não podia sair para ir ver os voos rasantes das andorinhas ou as garraiadas. Mas na Invicta muitas outras coisas aprendi. Segue-se um percurso entre o Norte e o Sul, até que de volta ao Porto frequento a Escola Soares dos Reis e também nesta cidade o curso de design de mobiliário. Depois continuei fora e dentro de Portugal a trabalhar e estudar, com vários mestres que me deram razões para continuar. A minha ocupação maior sempre foi a pintura e as outras actividades também muito importantes para mim; parecem existir para garantir total independência nas telas. Como designer, trabalho em áreas diversas e a heráldica está quase no centro entre o design e a arte, ocupando no presente os meus dias.
CL – Como define a profissão que exerce?
F.J.F. – Artista plástico e designer com trabalho na área da heráldica. Já dei aulas de pintura e cursos de heráldica para jovens, o que muito me surpreendeu, e para um público mais velho e maioritariamente ligado ao universo dos museus.
CL – Como se adquire esse tipo de conhecimento?
F.J.F. – No que concerne ao design e à pintura temos escolas e os ateliês de mestres. No que se refere à heráldica em Portugal infelizmente não é no ensino oficial que se adquirem ferramentas para desenhar e interpretar heráldica. No meu caso foi com um amigo. Muito jovens ainda pintávamos armas e tentávamos reconhecer/ler brasões como divertimento. Depois a pintura e as incursões na escultura sobrepõem-se a tudo até que novamente um amigo mais velho, tio de uma namorada inglesa, me inicia no desenhar, a usar uma gramática, como se de um idioma se tratasse. O resto devo-o aos poucos que em Portugal não confundem a heráldica com uma mera ilustração de vaidades. Ao contrário de outros países, em Portugal, nos cursos de comunicação gráfica a heráldica não é estudada. Como resultado temos, por exemplo, as armas nacionais desenhadas como na reforma heráldica do Estado Novo, cheias de linhas de contorno a que poderíamos chamar pleonasmos. Por não se saber como utilizar a heráldica temos muitas das nossas autarquias, em Portugal, que preferem um logótipo ao despojar do acessório no brasão, reduzindo o desenho ao escudo e desenhando-o de forma a garantir leitura em escala reduzidas. O logótipo é uma linguagem do mercado sujeita a tendências – modas – possui como característica o facto de quanto mais aproximado a uma moda mais depressa se tornar ultrapassado. O estudo e desenvolvimento do desenho heráldico no âmbito escolar não só faria cair os mitos – como o dos sete castelos nas armas nacionais que se tornam neste número por decreto apenas na reforma ao tempo de D. João II, já que até aí, desde Afonso III, as representações dos castelos variam em número e desenho – como ainda garantia o seu uso, já que muitas das armas de cidades, por exemplo, são seculares e em Portugal a história é um dos fortes argumentos usados pela tão importante indústria do turismo.
CL – Como é que um artista plástico, no sentido estrito do termo, envereda pela heráldica?
F.J.F. – A razão que me fez aprofundar o estudo e desenvolvimento da heráldica vem de leituras sobre semiótica em Macau. A proximidade a Hong-Kong permitiu-me, também, ver o contraste no uso da heráldica. Com o meu regresso a Portugal, que era para ser apenas algo como umas férias para tratar de assuntos importantes, fundei com a falecida designer Mónica Kirsch um ateliê e conseguimos colocar o nosso trabalho a nível internacional. O ateliê tomava todo o tempo sem margem para férias ou normais fins-de-semana, impedindo-nos de dar resposta a qualquer outra ocupação.
CL – Continua a pintar ou a heráldica ocupa todo o seu tempo?
F.J.P. – Como já referi, o número e a qualidade exigida, no ateliê de heráldica agora extinto, não me permitia ter tempo para voltar aos pincéis com a excepção de algumas ilustrações de heráldica pintadas a óleo sobre pele que serviram para capa de livro ou meramente para expor. Depois, tendo perdido o ateliê de pintura, com o passar do tempo estou à espera de reunir condições para poder regressar às telas e conseguir conciliá-las com o estudo e trabalho no desenho heráldico.
CL – O brasão está associado à nobreza. Porque razão há famílias com brasão e outras não?
F.J.P. – Uma reforma de D. Manuel I pôs fim ao uso de armas fora da nobreza. O exemplo que nos chega de alguns países continua a ser o uso de armas, especialmente na burguesia mercantil. Em Portugal apenas aqueles que tenham carta de armas passado por cartório especial podem usar armas. Há no entanto o que se designa por armas assumidas, que se não forem cópias de armas existentes será legítimo o seu uso e passagem a sucessores. Uma das batalhas que vou travando é mesmo sobre o que com o desenho heráldico se pode representar, já que não é um exclusivo da nobreza como se ouve amiúde. O brasão da cidade ou da aldeia, o brasão que representa a colectividade ou outra qualquer entidade possui longevidade e capacidade de evocação de valores que até o mercado recorre ao imitar brasão como adereço. Vemos como logótipo um brasão de armas, por exemplo, no rótulo da garrafa de vinho, no brasão como adereço em casaco, t-shirt, ou em tantas outras aplicações em que tantas vezes quem usa não se questiona sobre o significado. Dos meus trabalhos de design gráfico, no Instituto Cultural de Macau, destaco o uso da Cruz da Ordem de Cristo para iconografia do 10 de Junho, no início dos anos 90, não só pelas razões fáceis de associar mas também por ter visto, em livro, o festival de Tanegashima. Ali, no Japão, a Cruz significava Portugal, mas em Macau, quase ali ao lado, este magnifico desenho era ignorado com as imagens do 10 de Junho sem sinal de portugalidade. Hoje verifico, com emoção, que a Cruz da Ordem de Cristo possui em Macau utilização e aparece até na pintura dos artistas locais. Isto também se pode considerar um uso da heráldica.
Joaquim Magalhães de Castro